Descaminhos

por Eugenia Pickina

22.04.2020

Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo. (Carlos Drummond de Andrade)

A casa da minha infância não existe mais. Junto ao muro de pedra, uma tipuana antiga, e às vezes os passarinhos que apareciam ali para desfrutar do solzinho da manhã.

E, na primavera, as abelhas zuniam interessadas nas margaridas dos canteiros, enquanto as hortênsias tingiam de azul o cenário incerto do dia comprido.

E no começo da noite corríamos no gramado, os pés descalços, o futuro sob um mar de névoa, as mães àquela hora aprontando o jantar sem pressa.

Hoje, confinados em casa, andamos nostálgicos.

Minha amiga em Madri diz que as pessoas estão experimentando uma espécie de reflexão forçada. Algo que nós, adeptos (há tempos) do trabalho remoto (e muitas vezes solitário), conhecemos bem.

Macarena deixa um ‘textão’ no meu WhatsApp: “Nós comungamos diariamente esse pesadelo de novas mortes, medidas contra o contágio, escolas fechadas, uso obrigatório de máscaras, e o que isso significa? E daí tentamos viver, centenas de nós distraídos com livros, filmes, receitas, e ficamos cada vez mais tempo sozinhos com a tela. Um desperdício me parece ainda assim”.

Minha tia deixou de ler os jornais. Trocou as notícias do periódico local pelo labor matinal no seu afortunado jardim de inverno.

Minha sobrinha parou de passear com o cachorro. Liguei imediatamente para ela. Faço a pergunta retórica: “Tudo bem?” Ela me explica que se sente mal andando nas ruas vazias no fim da tarde. Insisto por causa do cachorro obeso e cardíaco. “Saia com ele no meio do dia”, digo a ela.

Meu pai me diz ao telefone: “uma situação desconhecida sempre é desconfortável”. Ora. Uma pandemia é razão suficiente para desestruturar qualquer pessoa (minha filha de dez anos ontem chorou muito de tristeza, pois sente falta dos amigos da escola). Abundam receios, pululam as fantasias, os ânimos se debilitam.

Então, como enfrentar uma coisa assim?

Apesar do medo, a adoção de uma rotina sóbria, constante e contínua encoraja bastante. É assim que funciona: dedicar-se ao aqui e agora, fazendo o que é possível fazer – estender a roupa no varal, varrer a casa, almoçar com os filhos, participar da reunião online, fazer as compras. Aproveitar o momento para pôr em prática a gentileza, o espírito de cooperação, consciente de que cada um de nós experimenta os descaminhos de um jeito muito particular. Mas ânimo! Pois isso também passará.

Abraço imenso!


Revisão: Maitê Ribeiro