Desafio na Raposo Tavares

por Appio Ribeiro

05.05.2020


Foto do antigo Grupo Escolar Pereira Barreto

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de

acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.)

Dutra, Vargas, Eduardo Gomes, Ademar de Barros... eu ouvia esses nomes nas discussões em casa, lá no Alto da Lapa, nas conversas entre amigos e parentes do meu pai, que nunca foi fervoroso e sempre ponderado. O meu mundo estava no meu Grupo Escolar, o Pereira Barreto, da Rua Raposo Tavares.

Lá aprendi mais coisas do que o “Caminho Feliz”, cartilha daquela época. As lembranças marcaram o meu caminho pela vida.

Olhando para esta clássica fotografia de todos os alunos da minha classe, em três fileiras, e a professora, orgulhosa, me vejo de uniforme, mas com gravatinha borboleta, acessório que era herança dos hábitos de meu avô e do meu pai. E isso me faz lembrar que todo dia, ao sair para a escola, minha mãe “me passava em revista”: tinha de mostrar as mãos, as unhas e orelhas para conferir o asseio; o sapato engraxado (não se usava tênis), meias erguidas, uniforme limpo e... gravatinha no lugar. Olhando esta foto, penso nas lições que recebia e não sabia.

Por exemplo, existia uma tal de “Caixa Escolar”. Funcionava assim: família do aluno que podia contribuía todo mês com algo em torno de uns 10 ou 20 reais de hoje, e os pagamentos eram anotados numa cartela cor de laranja. Os que não tinham condições recorriam a ela, para receber gratuitamente o lanche (nada além dum pãozinho com alguma coisa dentro (leite condensado, mortadela, queijo, manteiga e uma groselha ou suco) e ainda caderno, lápis, borracha e livro...

Adulto, o que aprendi dessa lição: solidariedade. E mais: amor próprio. O orgulho de poder ajudar e ver em quem recebia, além da gratidão e de um certo acanhamento, a vontade de um dia não precisar mais. Bem diferente dos dias de hoje, onde tudo é dado e, depois, exigido. E, nestes tempos de coronavírus, quando aulas estão suspensas, entregam... a merenda em domicílio.

Naquele pátio do Pereira Barreto, com as balaustradas de madeira que serviam de “piques”, aprendi a deixar minha timidez de lado e brincar com todos. E também descobri o que é inveja. Numa festinha da escola, no pátio coberto, se apresentou um ventríloquo, o Dom Facundo, com dois bonecos, um todo certinho, e o outro, o Dito, bem irreverente. E depois, alunos se apresentavam, tocando, declamando, cantando. Tinha uma menina, para quem eu sempre olhava e achava que ela também olhava para mim. E ela tocou acordeon (sanfona, como se dizia). Aí, um colega vai para o centro do “palco” e canta. Soltou os pulmões na “Aquarela do Brasil”. Cantou bem pra chuchu e foi superaplaudido por todos. E o pior (para mim), aquela menina do acordeon, de laço de fita no cabelo, não parava de aplaudir o cantor e olhar pra ele com aquele olhar... que eu gostaria que fosse para mim: que inveja!

Hoje chamam de bullying, mas naquele tempo essa palavra não existia. Mas existiam os moleques mais fortes que viviam provocando e azucrinando os mais fracos, por exemplo, eu.

Eu era vítima de um deles. Ele implicava com minha roupa (a bendita gravatinha!), me chamava de pó de arroz e seus amigos riam de mim pra valer. Eu sentia raiva e medo. Ele era maior e mais forte. Até que um dia a raiva superou o medo. E desafiei o moleque. “Vai lá na rua falar isso de novo!”. Isso era um sinal de desafio e de respeito: dentro da escola não se brigava. Ele foi!

Não me restou outra a alternativa digna senão cumprir o desafio. Resultado: apanhei pra caramba! Inclusive depois em casa, da minha mãe, quando cheguei amarrotado, rasgado e sujo. Mas eu também bati no infeliz. Não fugi. Valeu apanhar: ele me esqueceu. Acho que ficou sem graça me perseguir. Aprendi que a força dos fortes está é na fraqueza dos fracos. E hoje, na academia, quando bato com mais força minhas luvas contra o saco ou o pushing-ball, acho que meu inconsciente está batendo naquele moleque.

Foto da turma. O autor é o 1o. à direita na 1a. fila

Todo ano tinha foto da classe, como essa daí em cima. Em outra delas aparece um menino com um só sapato. Aquilo, sempre com um só sapato, me chamava atenção, porque parecia que o outro pé sempre estava machucado. Depois entendi. Estar calçado fazia parte do uniforme, e para alguns, um par de sapatos tinha de durar mais de um ano. Entenderam? Pois é, eu entendi: usando um pé por vez, o par iria durar o dobro e o menino estaria sempre de uniforme. Mais uma lição: apesar da gravatinha, entender a necessidade dos outros, conviver e respeitar todos.

Entretanto, a coisa mais agradável, mais gostosa do Grupo Escolar, ficava ao lado dele. A portinha ainda está lá, e não sei o que ela abriga hoje. No meu tempo aquilo era um templo de sabor e prazer: a Sorveteria Guarujá.

Ela tinha os sorvetes mais gostosos que já comi. E poder ver, dentro do balcão, aquele recipiente de metal girando, envolto em água gelada, com o sorveteiro todo de branco mexendo aquela massa colorida com uma enorme pá de madeira, e saber que eu ia poder comer aquilo... me dá água na boca até hoje.

Maracujá, ameixa, manga, coco, ah, quantos sabores! Pena que não era sempre que eu tinha dinheiro para lamber aquela bola de prazer em cima de um copinho de massa crocante. Mas aprendi o que é um sabor puro e verdadeiro. E a dar valor para as coisas simples.

Hoje, toda vez que tomo um sorvete “de massa num copinho”, lembro da Sorveteria Guarujá, da Raposo Tavares. Mas o de hoje não é tão gostoso!


Revisão: Maitê Ribeiro