A felicidade da mãe

por Eugenia Pickina

10.05.2020

No amor, só existem infinitos. Mia Couto

Minha mãe morreu não faz muito tempo. Ela tinha completado 64 anos, eu residia em Campinas e estávamos no outono. Quanto tempo andei em círculos?

Desde o fim da década de 90, minha mãe vivia no Mato Grosso. Vivia cercada de árvores e bichos, circunscrita ao arranjo sereno do rio e da floresta.

Nos seus últimos anos, depois que perdeu um filho de acidente, vivia sem devaneios, bastante lúcida sobre a impermanência que envolve tudo que é vivo e cresce na terra.

Poucos meses antes de morrer, minha mãe me ligou contando um sonho. “Desci de um trem com pessoas que eu não conhecia e seguimos a pé em direção a uma cidade muito exótica, diferente”, contou. Embora dividíssemos sonhos desde a minha infância, naquele instante, e provavelmente por um temor discreto, me abstive das lições de Jung sobre o mundo onírico, retendo minha atenção nas suas últimas palavras: “Minha filha, eu já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. Não tenho filho criança e sei que quem se agarra ao mundo só conhece sofrimento”.

Guimarães Rosa foi muito eficaz quando apontou que “saudade é ser, depois de ter.” Vivo com saudades. Sinto falta da voz da minha mãe. Da sua insistência em relação à ousadia e à coragem, porque sabia, e já meninazinha, que ser mulher no Brasil, na América Latina, é tarefa árdua. O que mais eu admirava na minha mãe era sua determinação para viver engajada no cotidiano, entregando-se às pequenas alegrias, única via capaz de evitar a oscilação pendular entre felicidade e infelicidade.

Nunca dei importância para datas comemorativas. Minha mãe, menos ainda. Mas, enquanto ela estava viva, no Dia das Mães, eu costumava telefonar para falarmos de um modo sagrado, aproveitando a data festiva para agradecer, enaltecer, bendizer...

A felicidade da minha mãe era os filhos crescerem. Como o poeta Kahlil Gibran, dona Adelaide sabia que filho é “flecha que disparamos”. Disparada a flecha, ela segue o seu caminho. É inútil resistir.

Hoje, no Dia das Mães, minha mãe está onde não sei e não vejo. Vivo sem a presença (física) da dona Adelaide. Sim, tenho saudades, mas não vivo triste, pois sei que a felicidade do filho é deixar a mãe ir.


Revisão: Maitê Ribeiro