Milton, o feio

por Galismarte

07.11.2019

"Não vou discutir. Prá mim o Milton não era feio, já que a beleza e a feiura estão nos olhos de quem as veem."

Mas o Milton era um tipo, permitam-me, meio insignificante. Vou tentar descrevê-lo: baixinho, muito magro, meio encurvado, óculos de fundo de garrafa e cabelos rareando na parte de cima.

Não dava a menor bola para as gozações: uns diziam que o médico se enganara e jogara fora a criança e criara a placenta; o próprio Milton dizia que quando nasceu era tão feio que a mãe contava que as visitas não conseguiam dizer “que bonitinho” e muitas vezes trocavam por um “que interessante”.

Trabalhava numa grande empresa de cosméticos e andava sempre com um tal de major que era o oposto do Milton: bem apessoado, charmoso, daqueles que usam um lenço de seda no pescoço, calças de veludo e apreciador de cachimbos.

O major fazia um sucesso danado com o mulherio, mas naquele tempo moças de família não saiam sozinhas com homens e sempre levavam a irmã ou a amiga mais desafortunada para que não fizessem concorrência. E é ai que o Milton entrava: “sempre sobrava alguma coisa prá mim”, ele dizia.

Era o mais novo de uma família tradicional de Campinas.

Foi dos primeiros a se alistar nas tropas paulistas da revolução de 32 e não recusava missões perigosas.

Ele mesmo narrava que uma vez estava de sentinela numa noite que era um breu desgraçado. Diz que ouviu um barulho tremendo vindo em sua direção e gritou várias vezes pela senha que não foi dita. Descarregou seu fuzil e saiu correndo. Na manhã seguinte encontraram uma vaca morta e o coitado do Milton, além da derrota passou a revolução toda sendo chamado de tenente vaca.

Eu o via passar sempre às sextas e sábados à noite vestido como um lorde inglês: terno de casimira escura, camisa branca de colarinho impecável, prendedor de gravata combinando com as abotoaduras e, num toque final, suspensórios.

Aos sábados à tarde ia com o napolitano Gijo ao Jóquei Clube. Ficavam perambulando pelas cocheiras, faziam amizade com treinadores, um ou outro jóquei, sempre tentando descobrir alguma barbada.

Acontece que o Milton não gostava de um jóquei argentino chamado Luis Rigoni e numa dessas andanças pelos bastidores recebeu uma dica de um cavalo no qual ninguém apostaria e, portanto, pagaria uma nota.

Acontece que o jóquei era o Rigoni, mas a tentação venceu e jogou no azarão todas suas posses do dia e, como de costume, foi assistir a corrida bem junto a cerca que separava a raia.

Quando os cavalos entraram na reta final o azarão estava em último. O Milton praguejava. Quando faltava 400 m ainda estava em sexto. Aí o Milton não aguentou: jogou todas as pules no meio da raia e o vento as levava cada vez mais para longe. Berrou contra o maldito argentino, mas por incrível que parecia, o jóquei ligou uma espécie de motorzinho e o cavalo foi passando um a um e, como num tango argentino, ganhou por uma cabeça.

O Milton, desesperado, pulou a cerca e saiu correndo pela raia buscando pegar uma a uma suas pules; e conseguiu, mas foi preso, ou quase foi; quando os guardas o pegaram, a multidão protestou aos berros e então soltaram o Milton que, feliz, foi receber seu dinheirinho.

Naquele mesmo sábado, à noite, ia ao Avenida Danças, na avenida Rio Branco, o melhor taxi dancing de São Paulo.

Lá, ele era conhecido como “o professor”. Exímio pé de valsa, picotava o cartão que custava um cruzeiro por minuto, e dançava com todas, ao som de boleros que diziam: “não sei que estranha magia, teu corpo irradia e que me deixa louco assim, mulher...”.

Mas tinha a sua preferida, a Sueli – de seios fartos e quadris volumosos – e ele então se aninhava naquelas carnes macias, como um bebê o faria com sua ama.

Um ou dois chopes depois, voltava para casa, cantarolando o último sucesso de Altemar Dutra, dormia feliz e, como todos nós sonhava, não se imaginando um galã de Hollywood, mas sim encontrando alguém que pudesse olhar para dentro das pessoas, onde estavam as sementes e não para as cascas enganadoras.

Morreu solteiro.