Meu amigo cineasta

por Galismarte

26.11.2019

"No final dos anos 50 e boa parte dos 60, morei em uma pensão na Vila Buarque, a então Vila Madalena daqueles tempos, reduto de artistas, estudantes e descolados."

A pensão da arara, como era conhecida, era uma daquelas antigas mansões de ricaços, adaptada, onde se hospedavam estudantes vindos de todos os cantos e alguns velhinhos ou velhinhas desamparadas.

Dividia um quarto, na edícula, bem nos fundos, com seu Joãozinho, contínuo da Secretaria da Saúde que já beirava os 60 anos.

No quarto ao lado, assim que vagou, chegou um garoto, um piá como diziam no Sul de onde viera.

Os dois irmãos mais velhos, o zero um e o zero dois, já faziam faculdade e ocupavam quartos melhores, dentro da casa.

O zero três, recém-chegado, ia fazer curso técnico no Mackenzie e, depois, quem sabe, uma faculdade.

O colega de quarto do piá era o Lelê, que enganava o pai dizendo que estudava e que só vivia na farra, dormia até tarde, tomava tequila no café da manhã e depois esmurrava o coitado do garoto.

Foi assim que o conheci: apartando a briga. Escutava o barulho entrava no quarto e lá via o piá encolhido na cama, protegendo a cabeça e o Lelê montado em cima dele.

O garoto era diferente, meio intelectual, sabe como é que é.

Tinha duas caixas de sapato que não deixava ninguém mexer. Descobri depois o segredo. Lá dentro fichas de milhares de filmes: diretores, atores, fotógrafos, técnicos... o cara sabia tudo de cinema. A gente testava, ficava perguntando isso e aquilo e ele respondia na lata.

Explicando: quando estudava interno no colégio marista em Florianópolis, todo mundo ia prá casa nos fins de semana e o piá, cujos pais moravam no Oeste de Santa Catarina, passava os sábados e os domingos assistindo todos os filmes que estivessem em cartaz. Se gostasse, assistia uma vez mais ou até duas.

Ficamos amigos e, com ele, aprendi a gostar ainda mais do cinema.

Íamos à Cinemateca, que então ficava na galeria Califórnia, na Rua Sete de Abril, que abrigava também o cine Coral, especializado em filmes de arte. Hitchcock, Fellini, Visconti, Antonioni. Traçávamos todos.

Foi lá que assisti L’âge d’or – A Idade do Ouro - filme muito louco, de 1930, com direção do Buñuel com roteiro do Salvador Dalí, e muitos outros que às vezes não entendia bem mas o piá explicava.

Passei a admirar o cinema japonês assistindo grandes filmes no cine Niterói e depois no Joia ambos na Liberdade. Grandes filmes é pleonasmo, pois assistimos “Ningen no Joken” , aqui chamado de Guerra e Humanidade de Masaki Kobayashi com 9 horas e meia de duração, dividido em três partes com pouco mais de três horas.

Foi ele que me levou a assistir o primeiro 007 – O Satânico Doutor No, no cine República e a imagem da Ursula Andress saindo do mar ficaria para sempre na minha cabeça.

O Piá era vidrado no Orson Welles e no filme Cidadão Kane, considerado um dos melhores de toda história. Às vezes eu o via pensativo, murmurando baixinho “rosebud” a última misteriosa palavra dita pelo magnata da imprensa Charles Foster Kane.

Anos mais tarde, já consagrado, ele homenagearia Welles através de um documentário sobre a vinda do diretor ao Brasil.

Um dos diretores favoritos do Piá era o americano Samuel Fuller.

No dia 2 de novembro de 1963, sábado, dia de finados, fomos na sessão das oito do cine Scala, na Rua Aurora. Estava passando House of Bamboo – Casa de Bambu – filme de 1955 do Fuller. Mal o filme tinha começado, olhando para cima eu vi uma pequena luzinha brilhando; depois um cheiro de queimado e, em seguida, caiu um reboco do teto. O incêndio foi rápido, tão rápido que o filme continuou passando até o fogo atingir a tela. Assistimos tudo, depois da correria inicial, como se fosse um filme dentro do filme.

Muitos anos depois consegui assistir novamente, na televisão, Casa de Bambu, dessa vez por inteiro, sem fumaça, mas de arrepiar.

Com 17 anos o Piá escreveu uma crônica de duas páginas para o Suplemento Literário do Estadão sobre o filme Os Cafajestes, de 1962, do diretor moçambicano Ruy Guerra. Ele era bom de cinema, mas escrever era o meu forte; então, sugerindo uma palavra aqui e outra ali, posso dizer que tive uma pequenina parte na redação daquela crônica.

40 anos depois, já consagrado e logo após receber o prêmio de melhor diretor no festival de Cinema de Brasília, meu amigo cineasta morria aqui em São Paulo. Jovem, como é tradição dos gênios.

Li a notícia no jornal e me lembrei daqueles tempos sem internet e sem Google, quando a história da magia do cinema cabia em duas caixas de sapato e imaginei que no seu último momento de consciência ao lado da mulher e de duas filhas ele deve ter dito ”rosebud”.