Desalinho

por Eugenia Pickina

05.12.2019

A vida só é possível reinventada. Cecília Meireles

Eu comecei a dirigir de novo. O sol estalando no vidro. A música entrou em mim: “Hold me up to the light/tell me if the sun comes shining through/And I’ve got this heaviness in my chest…”*

Com um pouquinho de tristeza, lembrei do conselho que minha mãe tinha dado à amiga dela a respeito de medo: “segue em frente, segue em frente…”

Doloroso escutar minha amiga, ela perdeu o marido há poucos meses.

“Deus do céu. Eu preciso me dar conta…”

“Ah, Dri.”

É isso o luto. Minha amiga tem a sensação de que um saco de pedras foi despejado dentro dela e há momentos em que ela mal consegue respirar. Acordar, vestir a roupa, levar o filho à escola, é como escalar um muro.

Ontem, na hora do almoço, quando estávamos juntas, ela começou a tremer. Depois falou sobre os dias em que cuidou dele, os últimos, escapando do mundo para estar plenamente com ele, aceitando pela primeira vez sem reserva seu estilo implicante.

“Me desculpe por jogar tudo isso em você de novo.”

“Eu te perdoo. Acho que sou sua amiga”, respondi.

Agora vem o fim de ano, fortes tempestades por conta do calor desmedido. E é verdade que é recomendável tanto considerar que o luto pertence à ordem natural das coisas, quanto aprender a não ter pena de si mesmo. Mas estar separado do que se ama é sofrimento e, por isso, em razão da natureza cíclica das coisas, é essencial aprender a suportar as provas inevitáveis com paciência para, de forma gradativa, voltar a cultivar a vida com coragem, embora sem superestimar as próprias forças.

Graças a seu trabalho de pesquisa na universidade, minha amiga volta à noite para casa e há uma série de leituras discriminadas para fazer, entrevistas para iniciar e que agora virão a calhar. Além disso, tem o apoio da família e de uma terapia.

Ontem, na hora de me despedir, insisti com ela: “ânimo, amiga, segue em frente…”

Virei à esquerda, e as árvores apareceram. Uma igreja, uma loja, um mercadinho. No fim da rua, uma casa que estava em ruínas. Havia pouco tráfego. Um carro passou buzinando. Tomar consciência que a vida é frágil e, às vezes, só nos cabe seguir em frente.

Notinha.

*A música citada no texto é “Who Am I”, de Vance Joy.

O mundo está em constante mudança e estamos todos sujeitos a perdas e dissabores. O que é importante: não podemos mudar o que acontece na vida, mas está dentro de nossa capacidade decidir como lidar com os acontecimentos. Em determinados situações, contudo, precisamos de amizade, apoio, fortaleza, para conseguir atravessar/superar o evento difícil ou absurdo.


Revisão: Maitê Ribeiro