Cão branco

por Galismarte

10.12.2019

Téo chegou ao fundo do poço. Desempregado há tempos, voltou a beber um pouco e andava mal-humorado. A coisa piorou quando a mulher descobriu que ele ainda se encontrava com a Ritinha, um amor mal resolvido dos velhos tempos.

Um dia, a mulher, que sustentava a casa, se encheu, botou tudo em duas malas, pegou a filha e se mandou pra casa da mãe.

Téo se sentiu o último homem na face da Terra. Quando parara de trabalhar perdera contato com os amigos. Achando que tudo conspirava contra ele, resolveu fugir.

Lembrou do Albertinho, que andava meio doente, mas que tinha uma casinha na praia onde os amigos iam para pescar, comer e beber. Tomou coragem e ligou para ele. A mulher atendeu e com voz chororô disse que o amigo tinha morrido quinze dias atrás.

Téo disfarçou a vergonha de ter se esquecido do amigo, deu os pêsames, reclamou que não fora avisado e perguntou pra viúva se aquela casinha da praia ainda existia e que ele queria alugá-la.

A casa foi emprestada de graça. A viúva disse que o Albertinho gostava muito dele e que podia ficar na casa quanto quisesse. Havia tirado algumas coisas, mais ainda tinha cama e um fogão e a chave estava atrás do registro da luz.

No dia seguinte, Téo foi ao banco, sacou todo o dinheiro que outrora colocara todo mês numa conta da poupança para a filha – e que jurou que nunca mexeria – e foi para a praia na ilusão de que estaria deixando seus fantasmas para trás.

Andava pela praia deserta – era inverno, não havia turistas – pescava quando tinha sorte e à noite ficava sentado na escuridão, contemplando o céu e relembrando os tempos em que fora quase feliz.

Mas nem tudo eram boas memórias. Dormia mal e ficava se indagando como estaria a mulher, a filha, a casa, o mundo que deixara.

No canto da praia, sempre via uma luz. Era um bar. Sentiu falta de gente e começou a ir toda noite. Bar de pescadores. Triste como a vida no mar. Alguém dedilhava um violão, velhas canções de amores perdidos. Ficava num canto, pedia uma cervejinha e mal falava com alguém.

Não gostava de animais, muito menos de cachorros. Mas tinha um cão que vinha se aninhar debaixo de sua mesa. Era estranho, os cachorros de praia eram escuros, sarnentos, feios mesmo. Aquele cão, porém, era branco e seus pelos pareciam fios de neve. Tentava enxotá-lo, mas o bicho não saía dali. Toda noite era a mesma coisa.

Dias depois, o branquelo começou a acompanhá-lo até a casa. Seguia atrás dele, numa distância segura, os dois em silêncio, esperava ele entrar e sumia na noite.

Um dia, Téo perguntou pra dona do bar de quem era aquele cachorro e se ele tinha nome. A mulher disse que era de um pescador que num dia de mar revolto, caiu da canoa e morreu afogado. Talvez tenha bebido, falou a mulher. E o animal não tinha nome, todos o chamavam de Branco.

Não demorou muito para os fantasmas voltarem a aterrorizar o pobre Téo. Estava com saudades, principalmente da filha. Queria ligar, mas não tinha coragem. Precisava fazer algo que o redimisse. Mas o quê? Lembrou-se então que tinha feito, nos bons tempos, um seguro de vida, fruto da persistência da chata da gerente do banco.

Uma noite resolveu. Deixou na mesa um bilhete e saiu. Estava frio. O mar extremamente calmo, sem ondas. Foi entrando. A Lua refletida na água parecia enorme. Arrepio de frio. Mais fundo, mais fundo, agora não dava mais pé. Gosto de sal na boca. Visão turvada. É só se deixar afundar, pensou, e permitir que a corrente o arraste para o mais longe possível.

Mas, no momento final, gritos, não, latidos e mais latidos. Levanta a cabeça, quiçá pela última vez, e vê o cão branco entrando no mar, nadando em direção a ele. Vamos morrer os dois, ele pensa. E, por razões inexplicáveis, sua atenção se volta para aquele cachorro estúpido, que ora aparece e que ora afunda. Foi saindo devagarinho e o cão, já na praia, se espreguiçando todo, saiu em desabalada corrida.

Voltou para casa, tremendo de frio, sentou-se na varanda, contemplando a grandeza do firmamento, e chorou. Uma voz interior lhe dizia: “Você é um Homem, não isto que você se tornou!”. E ali, meio dormindo meio acordado, sentiu como se o sal que ainda estava impregnado no corpo, o havia, de certa forma, purificado. Lembrou-se então do cão sem nome e dormiu como não fazia há muito.

No dia seguinte, já no ônibus que o levaria de volta, olhou pela janela e pelas ruas esburacadas vinha correndo o cão branco. Para Téo parecia que estava rindo, mas cães não riem, quem ri são as hienas. Na realidade achou que ele estava feliz. Abriu a janela e acenou e o cão foi ficando pequenino até sumir de sua visão.

O Cão Branco, então voltou para a sua vila de pescadores. Estava em paz, perdera um, mas salvara outro.