Sonhos adiados


Nossa colaboradora Lala Evan participou da 12º Edição do Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão e nos trouxe material para compartilhar com nossos leitores.


Lala Évan

26.01.2021

Em um momento de pandemia que já faz parte da história, mesmo confinados, surgiram várias iniciativas com objetivo de não sermos mutilados mentalmente. Dentre tantos, darei destaque à 12º Edição do Premio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, promovido pelo Instituto @vladimirherzog, em 2020.

Eu representando a FIAMFAAM e estudantes de jornalismo de faculdades de todos os cantos do país, com diversas experiências e expectativas, se uniram com o propósito de participar de um prêmio com visibilidade nacional.

Durante quase dois meses funcionamos como uma redação, totalmente virtual. Unimos esforços, compartilhamos conhecimentos e vivências para conseguir contar as histórias que nos propusemos.

Com o tema “Retratos da Pandemia”, nossa reportagem trouxe como pauta a Educação, falando sobre o preparo dos estudantes para o Enem 2020 e como a desigualdade e exclusão educacional no Brasil foram agravadas com a pandemia.

Além de sermos um dos ganhadores do prêmio, somos também vencedores por manter a união de um grupo heterogêneo com um mesmo propósito, que é a paixão pelo jornalismo.

Sonhos Adiados

Como a pandemia e a falta de recursos para o acesso ao ensino remoto impactaram no preparo para o enem 2020

Ninguém esperava que a realidade mudasse tanto como aconteceu em 2020. A pandemia de covid-19 trouxe dor e morte. Nos hospitais, profissionais da saúde do mundo inteiro sofreram com perdas e superlotação de leitos. A crise sanitária também reverberou em políticas essenciais para a cidadania, entre elas a educação.

ENEM para quem?

Em descompasso com o apelo da sociedade, o Ministério da Educação (MEC) divulgou, em maio de 2020, uma propaganda para estimular estudantes a se prepararem para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Essa divulgação mostrava adolescentes animados com a prova, gravando vídeos com bons equipamentos e mostrando notebooks de primeira linha. Uma ideia falsa de que o país não tem desigualdades. Em resposta, estudantes de todo o país uniram forças para adiar o exame para 2021.

A professora Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro, acredita que a realidade retratada na propaganda não condizia com a maioria das casas brasileiras. “Não há livros em casa, não há internet, ou há internet, mas para um único telefone celular da família”, afirma.

Apesar das dificuldades impostas pela pandemia, esta edição do Enem contou com 5,6 milhões de inscritos. Foram cerca de 700 mil novas inscrições em relação a 2019, representando um aumento de 13,5%. Para a presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), Rozana Barroso, é preciso melhorar e ampliar o Enem, além de garantir uma educação de qualidade para que a prova seja realizada com igualdade. “O Enem é uma porta de entrada importantíssima para o ensino superior. É o sonho dos estudantes”, comenta.

“O Enem está sendo muito técnico e pouco humano” - Charline Tenório dos Santos - Professora

Para Charline Tenório dos Santos, professora em Alagoas, é um retrocesso considerar 2020 como um ano letivo. Ela teme que a realização da prova distancie ainda mais a oportunidade de quem realmente precisa entrar em uma universidade pública. “Está sendo muito técnico e pouco humano”, afirma. O professor de História, Alexandre Lucílio da Cruz, acredita que o Ministério da Educação deveria postergar a realização do exame. “Pelo menos até que pudéssemos retornar às aulas com os nossos alunos, porque a gente não tem ideia de como eles estão”, afirma. Ele leciona em duas escolas da zona norte de São Paulo, a Escola Estadual República Argentina, no Bairro do Jaraguá, e no Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (Cieja), na Vila Sabrina.

Juventudes e a pandemia

Em junho de 2020, o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) realizou a pesquisa “Juventudes e a Pandemia do Coronavírus", em que reuniu a opinião de mais de 30 mil jovens de todo país. Wesla Monteiro, co-presidente do movimento Mapa Educação, afirma que essa pesquisa foi importante para entender o impacto da pandemia, apesar de não ter contemplado aqueles que não tinham acesso à internet para preencher o formulário. “Temos muitos jovens que não têm nenhum acesso, então esses dados são piores do que estamos pensando. O buraco é muito mais embaixo”, comenta Wesla.

“O Enem é uma porta de entrada importantíssima para o ensino superior. É o sonho dos estudantes” - Rozana Barroso, Presidente da Ubes

Segundo a pesquisa, os jovens sentem que as condições emocionais foram prejudicadas desde o início da pandemia. O psicólogo Lourenço Queiroz afirma que o isolamento social afetou diretamente a organização espaço-temporal da sociedade. “Quando o tempo e espaço são afetados, todas as esferas da vida são afetadas. Daí a enxurrada de problemas pedagógicos e psicológicos ligados à desorganização dos alunos em relação aos estudos”, explica Lourenço.

Para o especialista, outro aspecto fundamental é o impacto que a pandemia teve nas relações afetivas. A aprendizagem, segundo ele, não é um processo simplesmente cognitivo, uma vez que ela só se torna eficaz quando envolve afeto. “Há toda uma dinâmica afetiva entre professores e alunos que passa pelo olhar, pela voz, pela percepção e escuta sensível, pela identificação”, comenta o psicólogo.

“Quando o tempo e espaço são afetados, todas as esferas da vida são afetadas. Daí a enxurrada de problemas pedagógicos e psicológicos ligados à desorganização dos alunos em relação aos estudos” - Lourenço Queiroz, Psicólogo

Mesmo antes da pandemia, a condição de vulnerabilidade de alguns alunos já era um fator crucial para o desempenho nos estudos. Wesla Monteiro afirma que em regiões periféricas, com as escolas fechadas, os alunos são prejudicados. Para ela, o jovem que já não tinha grandes oportunidades antes da pandemia, por causa da falta de acesso à internet, hoje também não dispõe de outras formas de ajuda. “Exatamente essas pessoas que mais precisam do Enem pra fazer diferença no mundo que não vão conseguir ter esse acesso”, afirma.

Dados de uma pesquisa do Datafolha apontaram que, entre setembro e outubro, 29% dos professores não tinham acesso à internet. Ao todo, foram entrevistados 1005 professores das cinco regiões brasileiras.

Outro problema, agravado pela pandemia, é a evasão escolar de jovens desmotivados e com medo dos seus resultados na escola. De acordo com o relatório do Conjuve, 49% dos estudantes já pensaram em desistir do Enem 2020 e 67% não conseguiram estudar, desde que as aulas foram suspensas.

O ENEM 2020

Acolher os alunos de baixa renda que pretendem fazer o Enem e incentivá-los a continuar estudando. Essas foram as motivações de Giulia Pardo e Lucas Verissimo, ambos com 22 anos, que juntaram esforços e, em setembro de 2019, criaram o cursinho popular Dr. Almir Santana. Os dois estão no terceiro período de medicina na Universidade Federal de Sergipe. Para Giulia, “há coisas por trás” quando um estudante não compreende um assunto ou não estuda, por isso o cursinho se preparou para “abraçar” estes alunos.

Lucas afirma que, em comparação a outros cursinhos, conseguiram ter um número baixo de desistências entre seus alunos. Mesmo entre aqueles que precisavam trabalhar para ajudar a complementar a renda familiar. “Conseguimos arrecadar dinheiro e fizemos algumas ações, como a doação de cestas básicas”, explica.(1)

Já o professor Alexandre da Cruz está preocupado. Segundo ele, dos seus 60 alunos apenas 40 irão prestar o Enem. E desses 40, apenas cinco ou seis têm feito as atividades propostas durante o sistema de aulas online. “Eles não têm buscado junto a nós algum tipo de suporte ou esclarecimento de dúvidas. É uma coisa que preocupa um pouco”, desabafa.

É difícil ter certezas sobre o que esperar em 2021. Com o déficit de investimento em diversos setores, a tendência é que o mercado de trabalho e a educação sofram inconstâncias nos próximos anos. Sobre esse desnivelamento, Rozana Barroso diz acreditar que é impossível vencer a pandemia sem falar em educação. “Como vai superar a pandemia do coronavírus sem ciência e pesquisa? Não tem como”, conclui Rozana.


(1)Fonte: Pesquisa “Juventudes e a Pandemia do Coronavírus” – Junho/2020, Conjuve. Disponível em: https://www.juventudeseapandemia.com/

Conheça algumas histórias de jovens que tiveram seus sonhos adiados

Aline Santos

Remando contra a maré

(Texto e Entrevista: Abel Serafim)

A voz serena de Aline Santos contrasta com o seu dia a dia frenético. A técnica de enfermagem de 25 anos enfrenta, por semana, de dois a três plantões de doze horas. No intervalo do trabalho, transforma a copa do hospital em sala de estudo para o Enem. As tatuagens no corpo da jovem funcionam como injeção de ânimo para lidar com a adrenalina diária. No braço esquerdo, estão gravadas a frase “seja forte e corajosa” e um símbolo da cruz. Na perna direita, o desenho da cabeça do leão, que significa força e liderança.

Em dias de plantão, Aline fica em pé por quase sete horas. Entre às 19h e 3h, ela troca fraldas, dá banho e administra medicamentos aos pacientes, entre outras atividades. Das 3h às 4h, a técnica de enfermagem vai para a copa e prepara um chá de cidreira, boldo ou cravo e canela. E aproveita a tranquilidade do espaço de luz amena para estudar na mesa de madeira encostada na parede branca. Depois, ela tira um cochilo até as 7h, em um dos três beliches duplos, no dormitório reservado para os técnicos de enfermagem. Mas nem sempre é assim:

– Quando estou muito cansada, não tomo chá nem nada, vou dormir.

E aproveita a tranquilidade do espaço de luz amena para estudar na mesa de madeira encostada na parede branca.

Para facilitar a mobilidade, Aline atravessa a cidade de Aracaju em uma moto 300. Entre o bairro Industrial, onde reside, até o Hospital de Urgência de Sergipe Governador João Alves Filho, ela percorre uma distância de 6,4 km em 15 minutos. Se fosse de ônibus, ela gastaria cerca de 50 minutos. Entre ida e volta, ela economiza uma hora e 15 minutos do seu tempo cronometrado.

Aline mora em cima da casa da sogra. Ao subir os degraus, logo se depara com uma cadeira de plástico e uma mesa de mármore, com cadernos, bíblia e um estojo aberto empilhados. Ao lado, um quadro branco inclinado na parede, onde ela anota as tarefas. Do canto de estudo da técnica, avistam-se os demais cômodos: cozinha, sala, banheiro, área de serviço, varanda e dois quartos.

A mesa, que fica perto da cozinha, não é só utilizada para os estudos, mas também para as refeições diárias. Na mureta da escada, além de fotos e livros, tem a boneca em miniatura da Mulher Maravilha. A palavra coragem está escrita em um quadro retangular na parede branca da sala.

Em dias após o plantão, ela diz que a coragem para os estudos só aparece às 21h ou 22h e invade a madrugada. Nos dias de folga, começa a estudar a partir das 19h, com término ainda na madrugada, por volta das 2h, e pausa de uma hora. Uma rotina puxada, mas não inédita na vida da profissional de saúde. Em 2016, ela trabalhava como menor aprendiz e aproveitava a remuneração para pagar o curso de técnico em enfermagem no período da tarde. À noite, era o horário que sobrava para ir à escola terminar o último ano do ensino médio.

A palavra coragem está escrita em um quadro retangular na parede branca da sala.

– Sempre vendi trufas, bolos, porque minha família não é rica. E, no ensino médio, foi uma decisão bem dura porque eu queria fazer algum curso, mas a renda não dava. Então, eu disse: ‘vou fazer o curso de técnico para ter dinheiro para fazer psicologia’, porque eu nem imaginava conseguir fazer medicina.

Aline esperava que 2020 fosse o ano reservado exclusivamente para estudar para o Enem. Ela pediu demissão do emprego como técnica de um hospital particular no final de 2019. Em meio à pandemia, em abril, o marido dela foi demitido de um supermercado. Foi quando ela retornou para o mercado de trabalho. Antes disso, ela conseguia estudar doze horas por dia. Com o trabalho, estudar cinco horas é um “milagre”. No ápice da pandemia da covid-19, quando emendava dois plantões, ela pensou em desistir por conta do cansaço.

– Realmente, eu estava muito cansada. E procurei a presidente do cursinho e disse: ‘Olha, eu não estou conseguindo estudar. Não quero tirar a vaga de alguém, a oportunidade de outra pessoa. Então, eu quero sair do cursinho’.

A ideia de desistir dos planos não vingou. Os organizadores do cursinho popular conseguiram lhe mostrar o valor do seu esforço para conquistar o sonho de ser médica. Uma profissão que ela admira a cada vez que acompanha procedimentos da área.

– Meu Deus! Isso aqui é fantástico. Você tem o poder de curar outra pessoa, de melhorar a vida de outra pessoa.

Quando o repórter a perguntou sobre as referências de vida, Aline Santos olhou para o lado, colocou a mão na têmpora e disse, aos risos, que o entrevistador tinha pegado “pesado”.

– Rapaz, referência em caráter, minha mãe. Agora, de força de vontade, acho que eu mesma. Até que uma vez minha psicóloga perguntou: ‘Quem é essa Aline que não tem referência e sempre rema contra a maré?’ Eu disse: ‘não sei não, sou eu mesma.’ Não sei. Não sei te responder.

Livia Marina

O sorriso de Lívia

(Texto: Camila Barros, Entrevista: Lala Silva)

Aos 17 anos, Lívia Marina do Nascimento Marques sonha em ser médica. Seu riso sem defesas ilumina melhor que as lâmpadas da casa que divide com seus pais num terreno compartilhado na Vila Itaberaba, Brasilândia, periferia da zona norte de São Paulo. Quem vê a adolescente em um de seus momentos de dentes à mostra e olhos espremidos mal imagina que Lívia enfrenta, como milhares de jovens da Brasilândia, as dificuldades de um ensino à distância sem suporte tecnológico e educacional.

Antes da pandemia, a aluna do terceiro ano do ensino médio da Escola Estadual Professor Jácomo Stávale fazia planos para o seu último ano escolar e pensava em quais vestibulares iria se inscrever. Na época, já entendia que precisava se esforçar mais. Na sua concepção, os alunos de escolas públicas não possuem oportunidades tão boas quanto os de escolas privadas, o que acaba refletindo no desempenho do Enem. “Quando vamos fazer o Enem, passamos por um filtro social. Quem tem acesso a uma estrutura de ensino melhor acaba tendo mais chance”, comenta Lívia.

Pensou em desistir quando soube da insistência do MEC em não adiar o Enem, em meados de maio.

Com lucidez e pés no chão, Lívia entende que concluir o ensino médio antes da pandemia já era um desafio. O coronavírus, no entanto, agravou a situação. No dia 13 de março, ela parou de ir à escola porque ouviu as primeiras notícias sobre a pandemia em São Paulo. Até o finalzinho de abril, a escola não tinha enviado nenhuma lição e comunicou aos alunos que as aulas não voltariam até a pandemia acabar. “E lá para maio, como viram que não ia acabar tão cedo, começaram a mandar os blocos de lições pelo e-mail dos pais”, conta Lívia.

A estudante também relata as dificuldades de comunicação com a escola. Como não há aulas presenciais para esclarecer as dúvidas, o único contato que os alunos possuem é o e-mail enviado no final da atividade, que às vezes não é respondido devido à alta demanda. Compreensiva com a situação, Lívia entende seus professores: “Eu tenho professores que dão aula para o oitavo, o primeiro, o segundo e também o terceiro ano, e acaba sendo corrido para todos”.

O jeito foi continuar estudando em casa da forma que era possível. A forma possível, porém, nunca foi adequada. O ambiente de estudo carecia de boa qualidade de internet. Além disso, Lívia aprendeu a conviver com o barulho ensurdecedor das caixas de som de sua vizinhança, adepta de pancadões e forrós.

Ela pensou em desistir quando soube da insistência do MEC em não adiar o Enem, em meados de maio. De início, entrou em desespero porque sabia que não tinha o preparo adequado. Foi quando sua tia disse que pagaria o cursinho online de 20 reais por mês, e seu pai se esforçou para colocar a rede wi-fi na casa. Mesmo oscilando e caindo com frequência, devido à lentidão da conexão, esta ainda é a rede que possibilita sua educação.

O orçamento apertado, no entanto, não impede que a família compartilhe o sonho de ver Lívia na universidade.

A principal renda da família vem do pai, que é porteiro. A mãe é dona de casa, e a tia, professora da rede pública, ajuda em algumas despesas. Juntando os esforços, a renda é cerca de dois salários mínimos. O orçamento apertado, no entanto, não impede que a família compartilhe o sonho de ver Lívia na universidade. Entre sorrisos, a jovem diz que esta é a motivação que a faz seguir em frente e superar as dificuldades.

Quando o assunto é política, Lívia tem posicionamentos firmes e diretos. Muitas vezes, as divergências de opinião com a família causam desentendimentos, mas isso não reprime o seu gosto pelo tema. Para ela, a política decide o que vai ser da gente daqui pra frente. “Parece que o governo esqueceu de nós e não quer se lembrar de nós. Somos seres pensantes e queremos deixar eles para trás, mostrar quem realmente somos, os nossos valores”, afirma Lívia.

A estudante de riso solto carrega o medo do futuro. Sente o seu psicológico frágil demais para compreender claramente os conteúdos e conseguir encarar uma prova como o Enem. Como muitos outros jovens, ela viu o seu sonho de ingressar na faculdade prejudicado por uma pandemia .

Aos poucos, Lívia recupera o otimismo que demonstrou no início da conversa. Ela diz que, mesmo se não for aprovada nesta edição do Enem, continuará estudando. Talvez precise começar a trabalhar para pagar um cursinho melhor. Seja como for, Lívia deixa claro que desistir não é uma opção.

Caroline Puyanawa

Resistência como herança

(Texto: Thaís Teixeira e Victor Moura, Entrevista: Victor Moura)

Ela usa o termo “a gente” mesmo quando perguntada apenas sobre si. Caroline Puyanawa é um ser coletivo, que carrega no sobrenome a história e a força do lugar de onde nasceu. A aldeia da etnia Puyanawa fica no interior do município de Mâncio Lima, no estado do Acre, quase fronteira com o Peru. Ali, ela cresceu e criou suas raízes.

Aos 21 anos, Carol, como costuma ser chamada, faz artesanato, pinturas corporais, toca violão, ukulele, compõe e canta. Todos os sábados, ela participa de cerimônias com ayahuasca, bebida tradicional dos povos amazônicos feita a partir de uma composição de plantas. Nos rituais, beber a ayahuasca é uma maneira de se conectar com a natureza, os seres divinos e o grande espírito. “Envolve tanto a nossa ancestralidade, como a nossa própria vida”, explica a jovem.

Apesar de já cursar enfermagem, decidiu se inscrever na próxima edição do Enem. Ela sonha em ingressar na faculdade de direito para poder lutar e defender o seu povo. “A gente hoje não tem isso aqui dentro. E se no futuro a gente precisar?”, comenta Carol, consciente do contexto em que está inserida e da atual política praticada pelo governo federal em relação às demarcações de terras indígenas.

Ela sonha em ingressar na faculdade de direito para poder lutar e defender o seu povo.

Em junho de 2019, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, esteve no Acre e apresentou um projeto de expansão da BR-364 ligando o Brasil ao Peru. Caso o projeto se concretize, a rodovia internacional vai cortar uma das áreas mais bem preservadas da Amazônia, local que também é parte da terra indígena Puyanawa.

Devido a um erro de demarcação realizado em 18 de maio de 2000, os Puyanawa tentam reconquistar um espaço de 11 mil hectares. Em 2016, por causa da não perspectiva de revisão territorial por parte da Funai, a tribo iniciou um projeto de arrecadação financeira para tentar reaver a terra da qual foram expulsos. Atualmente, o território que foi morada dos antepassados de Carol pertence a um proprietário particular. A área está avaliada em R$4,95 milhões.

Em janeiro de 2020, Carol saiu cheia de planos da sua aldeia, chamada Barão do Rio Branco, para morar e estudar em Cruzeiro do Sul, município vizinho de Mâncio Lima. Partiu de carona em um ônibus e a viagem de 60 km durou cerca de duas horas. Era da mesma maneira que voltava para a aldeia, todo final de semana.

Dois meses depois, com o início da pandemia, precisou regressar em definitivo ao território indígena dos Puyanawa. Dividido entre as aldeias Barão e Ipiranga, ali vivem cerca de 700 pessoas. Logo que voltou, a estrada de terra que dava acesso ao local foi bloqueada por correntes, impedindo a entrada e a saída de todos. “Muita gente acabou adoecendo da noite pro dia. Muita gente”, comenta Carol.

Feito árvore, seu sonho precisava de ajuda para se manter de pé.

Confinada e com receio do que poderia acontecer, Carol se empenhava e dava o máximo de si para garantir o ingresso no curso de direito. Porém, feito árvore, seu sonho precisava de ajuda para se manter de pé. Dentro da área preservada, debaixo do pé de jambo, ela encontrava sossego. No entanto, sem computador nem internet o sossego não bastava.

Meio sem jeito e por vezes constrangida, ela caminhava cerca de quinze minutos no chão de barro até a casa do cacique, onde havia internet. Outras vezes, ia até pontos mais distantes da aldeia para conseguir alguma conexão. Dentro de casa, dava um jeito de se conectar com os dados móveis do celular, que não davam conta das horas que passava estudando na madrugada.

Ao mesmo tempo em que seu eixo de estudo ia se desmantelando, a covid-19 se alastrava na aldeia. Em reclusão, Carol observava o presente com preocupação, principalmente quando o vírus matou o cacique Mário Puyanawa, de 77 anos. “Toda a nossa comunidade se comoveu. Todo mundo parou. Foi muito difícil. A gente nem pode enterrar ele em nossa própria terra”, lamenta Carol. Mário deixou a esposa, oito filhos e um legado de luta pelos direitos dos indígenas. Seu corpo foi enterrado no município vizinho, em um local específico para as vítimas da doença.

Ela entende a educação como uma garantia de futuro. É fiel ao lugar onde fincou raízes e abraça a sua cultura como estilo de vida.

Mesmo com o psicológico afetado pela pandemia, Carol encontrou na família e em sua história o apoio e a força que precisava. Como mulher indígena, ela se inspira em outras que a antecederam e resistiram, naquela terra, contra invasores e coronéis. A professora Maria José, mãe de Carol e de mais duas outras mulheres, é o seu maior exemplo. Esse foi um dos motivos pelo qual a jovem continuou e se propôs a não desistir de estudar.

A internet chegou na sua casa após quatro meses de quarentena, por meio de um projeto local. Atualmente, Carol se prepara para o Enem em uma plataforma de educação online. Apesar de beneficiar a estudante, essa iniciativa não contempla a todos. Apenas 19 das 86 casas da aldeia desfrutam de bons dispositivos e conexão.

Além de cursar e se formar em direito, outro sonho da jovem é ver toda juventude Puyanawa também formada nas mais diversas áreas. Ela entende a educação como uma garantia de futuro. É fiel ao lugar onde fincou raízes e abraça a sua cultura como estilo de vida. No horizonte que vislumbra desde já, ser uma grande advogada e uma grande Puyanawa são destinos que se entrelaçam. “Acho que conhecimento só é válido quando você passa para as outras pessoas”, conclui Carol.

Romário Louzada

Livros e vontade

(Texto: Adriane Cristhine e Lucas Assumpção, Entrevista: Lucas Assumpção)

Romário Louzada, de 20 anos, é autodidata. A qualidade de ensino dos colégios que frequentou o obrigou a ser assim. Na adolescência, passou por mais de uma escola em São Cristóvão, sua cidade natal, em Sergipe. Para resolver a carência educacional, dedicou-se aos estudos de forma solitária, por meio de bibliotecas e vídeoaulas na internet. Nunca teve acesso à totalidade das disciplinas. Quando entrou no Colégio Estadual Deputado Elísio Carmelo, no ensino médio, mal tinha professores para as matérias essenciais.

No começo de 2020, Romário tinha como meta estudar mais. Afinal, o seu sonho é ser aprovado em medicina pelo Enem. Conseguiu se matricular no Cursinho Popular Dr. Almir Santana, organizado por estudantes de Medicina da Universidade de Sergipe. Para ele, a oportunidade era um caminho para tirar dúvidas e aprender os conteúdos que ficaram para trás.

Os dias difíceis não o desanimaram. O dinheiro da passagem era, muitas vezes, quem decidia se Romário ia ou não para o cursinho. Sempre que tinha oportunidade, ele chegava mais cedo para ocupar uma cadeira da biblioteca. Entretanto, com sua nova rotina de trabalho e o avanço da pandemia, seus objetivos acadêmicos tiveram que ser repensados.

O dinheiro da passagem era, muitas vezes, quem decidia se Romário ia ou não para o cursinho.

Todos os dias, Romário acorda pouco depois do nascer do sol para trabalhar em uma farmácia e, com exceção de uma pausa para o almoço, só é liberado às 19h. Quando volta para casa, que fica no bairro do Alto da Divinéia, próximo ao centro histórico da cidade, ajuda sua mãe a cuidar da irmã Elisiane, de 25 anos, que é autista. Romário é quem auxilia no preparo das refeições da irmã e acompanha a rotina de medicamentos dela.

Com o tempo tão dividido, é difícil encontrar um espaço para focar nos estudos. Além disso, dividindo o quarto com o primo mais novo e com pouco espaço para se concentrar, o cansaço do dia cheio toma conta do restante da noite de Romário.

Ele é a única fonte de renda fixa da casa. Além de Elisiane, moram com ele seus pais, Elisio e Verônica, e sua outra irmã, Tatyana, de 26 anos. O trabalho na farmácia surgiu, portanto, como uma mudança bem-vinda para o orçamento familiar, mesmo ocupando uma parte importante do tempo do estudante. “Foi uma mistura de necessidade e oportunidade. Eu trabalhava de ‘bico’ Iá, ia um dia ou dois. Para mim, era um aprendizado. Quando surgiu a proposta, aceitei na hora”, comenta Romário.

Romário fica feliz ao trabalhar com pessoas, atendendo às necessidades delas. Essa é uma das aptidões que o incentivam a ingressar na medicina.

Na farmácia, descobriu uma paixão: o contato com o público. Embora se considere introvertido, Romário fica feliz ao trabalhar com pessoas, atendendo às necessidades delas. Essa é uma das aptidões que o incentivam a ingressar na medicina. Para ele, a prática é parecida: quando buscam remédios, as pessoas costumam estar doentes. E isso, na pandemia, exige cuidados redobrados, para não correr o risco de levar o vírus até sua casa.

Quando se formar, Romário quer ser pesquisador. E Elisiane é o principal motivo: “Minha inspiração é minha irmã. Penso muito nela e quero ajudar, porque ela tem bastante dificuldade. Minha mãe também”. A medicina é, para ele, uma forma de contribuir com a sociedade, além de uma oportunidade para descobrir tratamentos, curas e medicamentos. Acima de tudo, é sobre ouvir as pessoas e cuidar delas. “Acho que isso é uma maravilha da medicina”, conclui.

No entanto, Romário acredita que o sonho ainda está distante. À medida que o Enem se aproxima, ele fica mais inseguro, pois não conseguiu recuperar o conteúdo. Mesmo com a data do Enem adiada, ele considera que isso não será o suficiente para driblar suas dificuldades com as matérias e passar no vestibular. “Nem assim dá para correr atrás do tempo perdido. O ano foi adiado, praticamente. Então, acho que vou deixar para os próximos anos. No meu caso, esse ano não dá mais”, lamenta.

Paula Beatriz

Primeiro a razão, depois o coração

(Texto: Camila Barros e Lala Silva, Entrevista: Lala Silva)

Paula Beatriz Reis Nunes, de 17 anos, pretende estudar psicologia. Encarando a realidade, ela sabe que o sonho de ingressar em biomedicina ou fisioterapia precisa ser adiado pela falta de recursos financeiros. Esses cursos só existem em universidades públicas de outras cidades, e os gastos extras com alimentação e moradia seriam demais para o orçamento da família. Para cursar o ensino superior, a jovem de Cuiabá, no estado de Mato Grosso, precisa ficar na cidade.

Aluna do terceiro ano do Ensino Médio no Instituto Federal de Educação e Tecnologia, ela ia para a escola em um ônibus quase sempre lotado e demorava pouco mais de uma hora no trajeto. Na pandemia, a distância ficou confinada nas paredes de sua casa alugada de três cômodos. Sala conjugada com a cozinha, um banheiro, um quarto para o irmão e outro que divide com a mãe. Em casa, ela não tem um lugar só dela e alterna seu canto de estudos entre o sofá da sala e a cadeira na cozinha.

Em casa, ela não tem um lugar só dela e alterna seu canto de estudos entre o sofá da sala e a cadeira na cozinha.

Até o início da pandemia, Paula estudava em regime integral, entrava às 7h e saía às 18h30. Ela recorda o impacto em sua escola quando, em março de 2020, foi confirmada a chegada do vírus: “Nossa, foi uma bagunça, eu e meus colegas não conseguimos organizar nossos pensamentos, ninguém sabia de nada”. Os alunos ficaram meses sem aula e sem o suporte da escola. Ela, inclusive, pensou em desistir do ano escolar algumas vezes.

Mesmo com as atividades remotas acontecendo, a comunicação entre alunos e professores ainda foi difícil. Não havia, por exemplo, um canal direto para tirar dúvidas quando Paula não conseguia entender o que seus professores estavam pedindo nos exercícios. Diante disso, a jovem tem a certeza que está cumprindo suas aulas apenas para encerrar o ensino médio. Ela não cultiva expectativas de que a escola consiga adequar os conteúdos em pouco tempo para fazer diferença em seu aprendizado. E a conexão instável de internet não é suficiente para repor um ano inteiro de aulas presenciais perdidas.

Paula conta que os outros colegas também passam por dificuldades para acompanhar as aulas remotas e manter o cronograma de estudos, principalmente os que moram nas zonas rurais da região. “Boa parte dos estudantes não têm acesso a essas tecnologias, seja porque têm falta de recursos em casa ou por morarem em lugares onde não pega internet”, diz.

Ainda assim, a vontade de ser a primeira da família a ingressar na universidade não foi interrompida pela má conexão da internet.

Mesmo com todas as dificuldades, Paula conseguiu ser selecionada para um cursinho preparatório gratuito, no período noturno, e tem recebido o suporte educacional que falta no seu ensino regular.

Uma boa colocação no Enem, agora, passa a ser visto por ela como algo possível de ser conquistado, ainda que não seja voltado para o seu sonho de entrar nos cursos de fisioterapia ou biomedicina. Embora tenha maior afinidade com essas duas graduações, Paula passou a examinar suas motivações e escolhas para o curso superior. Pesaram na balança a sua realidade financeira e as poucas opções de cursos em universidades públicas na cidade onde mora. Ela chegou a conclusão de que a escolha mais adequada seria a psicologia.

Agora, Paula traça um novo caminho. Quer ser um apoio financeiro para a família, ao mesmo tempo em que planeja continuar seus estudos. Apesar de, por hora, não ter escolhido o curso do coração, ela não pretende abandonar suas primeiras opções de carreira. No futuro, a jovem quer se especializar no que gosta. Ela diz que aprendeu que os sonhos podem esperar.

Hádyla Rutyelle

A resiliência de Hádyla

(Texto e Entrevista: Lucas Leal)

Na cidade de Imperatriz, no Maranhão, uma jovem teve seu sonho de ingressar na universidade atravessado pela pandemia. Hádyla Rutyelle de Souza Santos viu a sua vida afetada direta e indiretamente pela covid-19. Além de enfrentar um caso da doença na família, ela sofreu também com a falta de recursos para seguir a educação à distância e estudar para os vestibulares.

Sua rotina mudou completamente. De um dia para o outro, a estudante deixou de acordar às 4h30 para pegar o ônibus até sua escola. O colégio Dorgival Pinheiro de Sousa, onde Hádyla cursa o terceiro ano do ensino médio, fica no centro da cidade, a 15 km da casa onde mora com sua avó e seus pais.

De um dia para o outro, a estudante deixou de acordar às 4h30 para pegar o ônibus até sua escola.

A situação, porém, não foi das melhores. Sua avó sofreu um acidente e ficou impossibilitada de andar, necessitando de cuidados constantes. A família se dividia e passava boa parte do dia dedicada à saúde da matriarca. Pouco tempo depois, sua mãe contraiu a covid-19 e decidiu cumprir o isolamento social em outra casa. “Foram momentos muito complicados e de muita tristeza”, relata a jovem.

Ao longo de duas semanas, a estudante lidou com o receio pela saúde de sua família. “Foi nesse tempo que eu fiquei afastada sem estudar, perdi muitas aulas, muitas tarefas”, comenta Hádyla. A preocupação era constante. Além de cuidar da avó, também precisava lidar com a saudade da mãe. Para ela, esse foi um dos períodos mais difíceis que já enfrentou. “Sou muito grudada na minha mãe”, explica.

Além disso, Hádyla também tinha que encarar a falta de internet em casa para participar das aulas online. Pouco tempo depois do decreto da quarentena, o governo estadual do Maranhão implementou o ensino remoto. Porém, ela só conseguiu participar plenamente das aulas cinco meses depois, quando recebeu do governo um chip de internet.

Era quase impossível estar conectada e presente nos horários corretos, com um pacote de internet que travava muito e acabava rapidamente.

Em função disso, ela perdeu muitas aulas e provas. Era quase impossível estar conectada e presente nos horários corretos, com um pacote de internet que travava muito e acabava rapidamente. Para tentar não perder mais conteúdos, chegou a ir para a casa da tia algumas vezes. Lá era o único lugar que ela conhecia com acesso ao wi-fi.

Em casa, Hádyla estuda como consegue. Não tem uma rotina certa, mas tenta fazer as atividades escolares de manhã e à tarde. Prefere estudar na sala, numa mesinha de centro, apesar de ter um espaço seu no quarto que divide com a avó. A pandemia não só trouxe consequências para a sua família como também impactou em todos os aspectos da sua vida. “Complicou mais, teve muitos momentos difíceis, foi um ano muito complicado, de muita tristeza”, comenta a estudante.

Mesmo com o psicológico abalado e nada conspirando a seu favor, ela nunca pensou em desistir e tem conseguido dar conta de tudo. Hádyla pensa em prestar o Enem para duas áreas: psicologia ou odontologia. Ainda não está certa, mas tem muita vontade e nenhuma dúvida de que vai conseguir. Ela sabe que são momentos difíceis para todos, mas não deixa de enfatizar a sua determinação de seguir em frente: “Independente disso, vou conseguir o que quero tanto e alcançar todos os meus objetivos”.

Sophia Beatriz Kurth

Incertezas no caminho

(Texto e Entrevista: Guilherme Sá)

Aos 12 anos, Sophia Beatriz Kurth Reckers saiu da pequena Angelina, no interior de Santa Catarina, para morar em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O desejo era estudar em um bom colégio da capital para ter vantagens no vestibular de direito. “Eu via que o meu sonho de trabalhar com direito ali nunca iria acontecer se eu continuasse naquela cidade”, comenta. Sair da casa da mãe e morar com a tia foi uma decisão que ela conta com naturalidade, hoje aos 17 anos.

Adaptar-se a novos lugares nunca foi problema para Sophia. Ela estava acostumada a constantes mudanças de endereço, por causa do trabalho da mãe que é bancária: “Perder amizades e fazer novas eu já estou habituada”. Para ela, sua facilidade de comunicação e a escola sempre tiveram um papel importante na hora de recomeçar.

À medida que a quarentena avançava, o medo de Sophia crescia. O medo de não saber o que aconteceria, se iria se formar ou não. Essa insegurança era alimentada pelo descaso no ensino.

O sorriso e gestos animados, que saltam à tela do computador enquanto conversamos, é de uma adolescente cheia de sonhos. Sophia relembra o tempo em que estava no segundo ano do ensino médio: “O melhor ano da escola pra mim. Eu sonhava que esse ano também seria maravilhoso”.

O ano de 2020 seria, de fato, único para a estudante. Após seis meses procurando emprego, ela conseguiu uma vaga de menor aprendiz. A felicidade foi enorme. Sophia começou a trabalhar no ambiente que um dia lhe será corriqueiro. A vaga que conquistou foi para o setor administrativo de um escritório de advocacia. Sua função é digitalizar os processos para o portal eletrônico, além de cuidar das planilhas de solicitações e envio de documentos.

A dinâmica de trabalhar e estudar ocupava a maior parte do seu dia, mas ainda sobrava tempo para suas atividades favoritas. Após o trabalho, era comum reunir-se com os amigos para sair, comer e, aos finais de semana, passear no parque Guaíba, uma extensa área verde de lazer em Porto Alegre. Hoje, ela sente falta dessa rotina.

O sorriso e gestos animados, que saltam à tela do computador enquanto conversamos, é de uma adolescente cheia de sonhos.

Muitos amigos da escola Professor Júlio Grau desistiram de continuar a estudar. O descompasso do momento, a incerteza do futuro e o sentimento de frustração tomaram conta. Em nada lembra o início do ano cheio de planos para a formatura. “A gente pisou na escola já pensando nisso”, relembra.

O colégio público no centro de Porto Alegre é uma referência no ensino médio. No entanto, assim como outros do país, enfrentou dificuldades para seguir o cronograma escolar na pandemia. À medida que a quarentena avançava, o medo de Sophia crescia. O medo de não saber o que aconteceria, se iria se formar ou não. Essa insegurança era alimentada pelo descaso no ensino.

As atividades foram reduzidas a questões de múltipla escolha, enviados por e-mail ou WhatsApp: “Oito meses recebendo qualquer atividade que pudesse ser considerada como nota”, explica a estudante. Sem as aulas explicativas, ela acredita que a escassez do material didático é um problema. Isso fragiliza a sua ambição de se preparar adequadamente, para disputar uma vaga no concorrido curso de direito.

Após reivindicação dos alunos, alguns professores aderiram à plataforma de aulas online. A baixa adesão ao sistema pelos docentes, no entanto, comprometeu o sucesso. “Disponibilizaram alguns links, às vezes algum material de apoio. Mas foi a minoria”, relata Sophia. A situação melhorou no mês de novembro, quando o governo estadual do Rio Grande do Sul adotou o @educar, e-mail de acesso a plataforma Google Classroom, utilizada pela maioria dos professores. As aulas com duração de 40 minutos a uma hora são gravadas e enviadas para os alunos.

Sophia conta que, para suprir a necessidade de se preparar para a prova do Enem, a família decidiu custear um cursinho online. Porém, adaptar-se à metodologia foi um problema e ela desistiu no meio do ano. Agora, sua rotina de estudos inclui os tradicionais resumos e fichamentos, prática habitual antes da pandemia. Ela também tem acompanhado o “desafio cem dias”, lançado nas redes sociais por um pré-vestibular de Porto Alegre.

Sophia saiu de Angelina determinada a conquistar o sonho de ser advogada. Ela demonstra paixão por esse projeto de vida e pelos amigos. No momento, incomoda o sentimento de falta. A falta dos colegas, da escola e de visitar a mãe. Faz falta a rotina com horário apertado, levantar cedo e pegar o ônibus. Ela vive os dias entre a certeza do quer para o futuro e a incerteza de como chegar lá.