O impacto da pandemia na educação: uma reflexão sobre a desigualdade social

Entrevista com a pedagoga Ausonia Donato

Sonia Okita

07.07.2021

O trabalho incansável desta educadora a coloca na linha de frente do exercício pedagógico fundamental no caminho da inclusão social. Em entrevista ao Cidadão e Repórter, ouvimos o relato de sua trajetória de vida dedicada ao ensino.

Ausonia Favorido Donato é diretora pedagógica do Colégio Equipe, em São Paulo. Doutora em Saúde Pública pela USP, com duplo mestrado, em Educação em Saúde Pública e Psicologia da Educação, dedica-se desde 1969 ao trabalho de educação formal e à saúde pública. É diretora do Núcleo de Ensino no Instituto de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde e diretora pedagógica da Escola Técnica do SUS da Secretaria Municipal de Saúde.

Atualmente com 75 anos, Ausonia foi testemunha ocular das transformações que aconteceram no país. No período da ditadura militar nos anos 70, viu a reforma na educação afetar a sociedade e como até hoje sente os reflexos das mudanças que ocorreram. Lembra com nostalgia do tempo em que estudou no Colégio Estadual Presidente Roosevelt e dos professores que eram verdadeiros profissionais dedicados ao ensino, excelentes orientadores educacionais, muito diferente do que acontece hoje.

Nesta entrevista ao Cidadão e Repórter em fevereiro de 2021, Ausonia falou da desigualdade social dos alunos e professores nas escolas públicas e privadas que se acentuou devido à pandemia respondendo às perguntas a seguir:

CeR: Na pandemia, como a desigualdade afetou a educação do ensino básico no Brasil sem as aulas presenciais e com estudo remoto?

Sobre este assunto, Ausonia respondeu que “para uma reflexão sobre a desigualdade social, dou sempre o mesmo exemplo concreto da população ribeirinha na seguinte situação: numa escola em uma população muito pobre com os professores sempre muito preocupados com a presença dos alunos, entenderam que estes estavam sem acesso a qualquer recurso tecnológico. Conseguiram levar nas casas alguns celulares e numa delas, um menino falou que não queria celulares, mas que queria comida. Com este exemplo pode-se ilustrar e materializar o que é desigualdade. Sabemos que em outra classe social, os alunos têm, não só todos os recursos tecnológicos, mas todo alimento que quiserem”.

“O impacto (da pandemia) se deu de diferentes maneiras dependendo do estrato social, alguns empobreceram e se tornaram mais vulneráveis enquanto outros se fortaleceram.”

Outro exemplo de desigualdade acontece nas escolas públicas e privadas, explica. As escolas particulares, em sua maioria contrataram médicos sanitaristas e epidemiologistas para pensar nas estratégias de retorno às atividades. Outras escolas não têm nem porta de banheiro decente. Estes são dados da realidade. Alguns professores puderam contratar assessores e desenvolvedores de tecnologia que fizeram um trabalho de aulas pelo modo remoto realmente sensacional. E outros ainda estão com muita dificuldade para entrar online, enquanto várias escolas particulares estão voltando e muito bem, porque puderam fazer reformas estruturais e pôr em prática as medidas protetivas, como reforma para construção arejada e de ensino à distância.

Em comparação com uma escola no Butantã, Ausonia disse que a escola não era arejada, portanto, sem condições sanitárias. Ao ser informada da situação, a direção alegou que não havia o que fazer, sem falar que não tinha álcool, e nem condições de receber alunos para reabertura. Por outro lado, uma determinada escola privada contratou um pianista para receber pais e alunos com música ao vivo, durante a abertura parcial da volta às aulas presenciais.

CeR: Como o ambiente familiar interfere no aprendizado?

Cada criança tem direito a tecnologia da Internet e um aparelho para estudar em casa. Tem famílias que têm um celular e 6 crianças. Além disso, alguns pais precisam que as crianças voltem às escolas porque não têm com quem deixar enquanto vão procurar emprego.

A falta de um plano nacional de vacinação e de educação tem levantado perguntas como: “professora, será que não tem perigo voltar às aulas presenciais?”, que entre outras questões, se confunde com o conceito de vulnerabilidade. Ausonia, com 75 anos é diabética, não se sente tão vulnerável como o morador de rua ou o faxineiro de um hospital com pacientes com Covid e também não precisa pegar condução lotada, e se sente segura porque está em casa sem precisar sair.

CeR: As diretrizes educacionais unificadas são adequadas ao professor e ao aluno?

As diretrizes da educação têm relação com universalidade, tem que ter um planejamento amplo, mas é muito importante que a prática pedagógica seja planejada na escola, conforme a realidade de cada lugar.

Ausonia é inflexível na defesa de se investir na formação dos professores, sem a qual todos perdem. Além disso, a escola tem que estar adaptada à realidade do lugar, não adianta importar conteúdo que não tenha sentido e nem relação com as crianças e as famílias de um determinado território. Cada escola tem que ter um projeto político pedagógico com autonomia. É preciso ouvir as pessoas para saber quais são as reais necessidades e focar num projeto pedagógico personalizado para a população local, principalmente em investimento. Em suas palavras, “não dá para ser um pacote unificado igual para todos como era antigamente”, exemplificado pela diferença de famílias da zona rural e das cidades.

Em comparação com os colégios públicos dos anos 60, destaca a excelente formação que os professores daquela época tinham, como um fator fundamental para o desenvolvimento escolar e a influência destes “melhores professores da vida e inesquecíveis” para a vida futura, sem se deter apenas nas matérias escolares.

Na volta às aulas, será preciso um novo enfoque, diferente do programado anteriormente, adaptado aos novos conhecimentos sobre a pandemia. Da mesma forma, um currículo adaptado a uma realidade regional ajuda uma comunidade a se identificar com a escola como um local de referência.

O investimento na formação dos professores também é muito importante, mas infelizmente está acontecendo o contrário.

Segundo a educadora, a desigualdade também acontece entre os professores porque se percebeu os diferentes níveis do saber utilizar um computador como único recurso para dar aula.

Há um certo equívoco em relação à tecnologia como ferramenta na educação.

O tecnicismo na educação, uma corrente que Ausonia nunca abraçou, tem sido objeto principal de alguns professores que se dedicam muito à máquina e ao seu manejo, ao invés de usar somente como um recurso de aproximação com o aluno. Enquanto isso, não há diálogo e nem interação e cabe ao aluno apenas obedecer aos comandos do professor para abrir e fechar a câmera e o microfone. As aulas além de serem virtuais são também lineares.

Existe um lado positivo porque foi disponibilizado um canal de mídias gravado para que as crianças possam acessar quando quiserem ou puderem, porém, não são os próprios professores que dão as aulas neste canal.

Sem a interação real com seu professor, os alunos ficam assujeitados pelo tecnicismo e a máquina passa a ser o centro e não um meio pedagógico.

“O lado humano é fundamental, as crianças querem os professores”, disse.

Para esta educadora, não se sentir seguro na pandemia é causa de medo, e “o medo é um freio da criatividade e disponibilidade. A educação é disponibilidade, e despojar-se sem se amedrontar”.

Sobre uma experiência positiva de uma escola particular, Ausonia relata a utilização racional da tecnologia virtual a favor da interação. Havia professores que não sabiam ligar um computador, e com ajuda de técnicos, estes professores fizeram trabalhos excepcionais socializando conhecimento com a finalidade maior que é desenvolver o aluno em total integralidade.

Muito otimista, Ausonia acredita que a escola pública ainda pode ser vitoriosa graças ao empenho de cada um para contribuir.

Num retrospecto histórico, Ausonia relembra como a ditadura bloqueou todas as atividades ligadas ao conhecimento, houve uma banalização com a abertura de escolas particulares com critério pedagógico ineficaz, sob a pretensa democratização do conhecimento. Nesta época, Ausonia foi criticada e combatida por acreditar na filosofia “nenhum a menos” como coordenadora de atividades em saúde e educação, por desempenhar persistentemente seu papel de educadora para levar conhecimento sobre vacinas à população que precisava ser sensibilizada da importância da saúde coletiva, a finalidade das vacinas.

No final da entrevista ficou uma valiosa mensagem de alguém que acredita muito em tudo o que faz e com teimosia não mede esforços para ensinar, sua verdadeira vocação, levando luz e conhecimento seja onde for não importa para quem. Esta é sua missão e lição de vida.

Revisão ortográfica: Anne Preste


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