Desigualdades sem voz

por Lala Évan

14.06.2020

Vivemos há muito tempo a revolução da igualdade, mas a desigualdade é parte constituinte do DNA nacional. A fundação do Brasil como Estado-nação está ancorada na desigualdade em violência, na discriminação e, em particular, no racismo contra os negros. E esses fatores não são periféricos.

Partimos de um patamar difícil, há um déficit histórico estrutural de direitos, uma vez que o nosso ponto inicial é a desigualdade, a violência e o racismo. Temos de resolver esse déficit, o que não poderá ser feito sem ações específicas. Temos todas as chances como país, temos todos os talentos e o conhecimento para superar essa situação de déficit estrutural de direitos.

Apesar de o Brasil ser tão desigual, violento e discriminador, ao mesmo tempo um país com muita condição de construção de laços de solidariedade, de compaixão e de empatia. O caminho está por um lado no campo da imaginação, da cultura e da educação, temos de reforçar esses valores, reforçar a ideia de que todos somos iguais. Todos deveríamos ter acesso aos bens que garantam uma vida de qualidade. Isso é um lado. O outro é fortalecer a ideia do protagonismo, de que as pessoas sejam cada vez mais agentes ativos da construção de suas vidas. E aqui abrimos um viés para a participação das populações de periferia, da juventude das favelas, que têm chamado cada vez mais para si a oportunidade de levar suas lutas e exigir seus direitos.

A mesma coisa eu poderia dizer em relação ao movimento de mulheres, com a incorporação de toda uma geração de meninas que ressignificaram a própria ideia do feminismo, renovando sua mensagem, a capacidade de diálogo com setores mais amplos da sociedade, sem jogar fora o aprendizado e a experiência de suas mães e avós, as lutas históricas do feminismo. Essa movimentação incorpora as agendas recentes das mulheres negras, das mulheres trans, das prostitutas, com discussões que antes não apareciam com força no feminismo histórico.

É possível avançar essa agenda da igualdade, o sentimento mais ou menos adormecido de solidariedade, a consciência de que o direito nunca vai estar plenamente contemplado, enquanto tiver pessoas com seu direito violado.

Indiferença quanto à violência tem grande grau de consentimento da sociedade. A sociedade está olhando para o outro lado. Uma vez eu me referi à questão como uma espécie de “epidemia de indiferença”; a sociedade não é somente o cidadão comum, mas também as pessoas que nela têm influência na medida em que adotamos uma perspectiva redutora de direitos, que foca em uma política social muito excludente e ajuste fiscal que não leva em conta o padrão desigual em relação a quem acessa serviço de bens e direitos, gerando mobilização por parte de alguns setores brasileiros.

Temos de fortalecer na sociedade a disposição para que essas vozes sejam ouvidas na sua diversidade. Isso vale para o Estado, mas vale também para a sociedade. Precisamos aprimorar nossas habilidades, como sociedade, como instituição, de escuta. O Congresso e o Estado, em grande medida, têm se feito de surdos a essas demandas e na sociedade, infelizmente, proliferam muitas vezes as falas autocentradas, pessoas que olham somente para o lugar onde vivem – sem escutar os demais. Isso acaba fortalecendo o preconceito, o fundamentalismo e as polarizações. O direito fundamental à fala, à manifestação, ao protesto, à liberdade de expressão são a base de um ambiente mais propício à escuta e, portanto, ao avanço de agendas e acordos. Precisamos construir pontes na sociedade em torno dos acordos básicos para superar a desigualdade, com articulação nas políticas da Igualdade Social, tendo participação efetiva nas audiências públicas. Temos de nos defender sem distorcer nosso direito de sermos humanos.


Revisão: Maitê Ribeiro