Coriolano, Vespasiano... e não era na Roma Antiga

por Appio Ribeiro

11.03.2020

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele. Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.)

Esses nomes e mais os de Espártaco, Clélia, Marco Aurélio, Fáustolo, Fábia, Cornélia, Marcelina, Scipião, Crasso e outros tantos eram nomes das ruas do bairro em que nasci: a Vila Romana. Acho criativo e coerente os nomes das ruas manterem essa relação com o nome do bairro, como nos Jardins Europa, Paulista, ou em Mirandópolis. Mas, quando nasci e nos cinco anos que lá vivi, sequer sabia o nome da rua onde morava. Era Vespasiano (*). Só quando me tornei adulto soube quem fora ele, e alguns dos outros.

Eu morava na esquina da Vespasiano com a Coriolano. A casa ainda está lá. Reformada, ampliada, repintada de marrom, renovada, mas ainda está lá. E de lá me vêm algumas das mais remotas memórias.

Bem na esquina, onde hoje é uma lojinha, ficava o salão do barbeiro, na mesma edificação da casa. Não lembro o nome dele, mas lembro de mim, sentado na cadeira enorme, em que era preciso colocar uma tábua entre os braços (da cadeira) para eu poder me sentar, e ficar acima do espaldar.

E envolto naquela toalha branca, eu me via no espelho, E me sentia gente grande. O corte era “escovinha”. E o “não se mexe, menino!” era constante.

Lembro de meu pai de bicicleta, chegando do trabalho, da Companhia Melhoramentos, na Rua Espártaco. Antes, ela produzia cultura editando milhares de livros. Hoje é mais um Centro Cultural.

Porém o que mais presente está na minha memória era o barulho de tesoura. Sim, o “tric-tric” quase ininterrupto que eu ouvia da sala da minha casa. Na sala havia uma porta que jamais fora aberta, um mistério. Mas simplesmente ela separava a sala da minha casa do salão do barbeiro.

O “tric-tric-tric” era incessante, e dava pra saber quando ele estava cortando o cabelo do freguês e quando o barbeiro batia a tesoura para limpá-la dos pelos presos nela. Como um tique nervoso. Primeiro, “tric-tric” e depois, “tric-tric-tric”. Adulto, descobri o ritmo do grande Dave Brubeck, no Take Five. A tesoura do barbeiro foi precursora! 1,2,3, 1,2; 1,2,3, 12; 1,2,3, 1,2; 1,2,3, 12...

E aí eu “ouvia” quando era sábado: era quando o ruído do tric-tric aumentava e do salão vinham vozes de homens, conversas, risadas. Sábado era dia de os homens apararem os cabelos, escanhoar a barba e, claro, colocar as conversas do bairro em dia.

Na esquina, em 1948, com meu pai e eu na bicicleta

Essa minha casa tinha um andar em cima, um “porão” embaixo, um quintal com uma “cozinha suja” (porque a “cozinha limpa” ficava no andar de cima), e uma escadinha, para se chegar à sala, quartos e banheiro. E os cômodos tinham janelas que davam para a Rua Vespasiano, com visão para a outra esquina, hoje ocupada por um prédio de apartamentos bem moderno.

Mas, em 1948 (ou 1949?), havia apenas um terreno nessa esquina e que começou a ser ocupado, pela primeira vez, com a construção de um galpão.

Nesse tempo, eu não saía pra rua, nela nunca passava um carro, pouca gente andava por lá, não havia movimento.

E ficar olhando pela janela ficou interessante quando começou a construção. Ia ser um grande galpão.

O movimento dos trabalhadores despertava e prendia a atenção de uma criança curiosa (eu) de uns três ou quatro anos, que nunca vira aquilo.

No centro da construção, estava sendo erguida uma torre de metal, com muitos metros de altura.

O quintal da casa era assim e eu aos 3 anos de colete e gravata

Certo dia, eu estava à janela, fascinado, vendo um homem - um operário, de chapéu - ir subindo ao alto daquela torre e começar a trabalhar nela.

Eu nunca tinha ido a um circo, mas acho que aquele homem na torre exercia o mesmo fascínio que os trapezistas inspiram.

Lá pelas tantas, dou um berro e começo a gritar. Minha mãe me socorre assustada. Nada comigo acontecera.

– “O que foi? O que aconteceu?” E eu gritava: “caiu, caiu, caiu!” e apontava.

Não caiu. Caíram: caiu o homem e caiu a torre. Desabaram até o chão. E eu vi tudo. Testemunha ocular com menos de cinco anos. E me lembro hoje como se a imagem me passasse em slow-motion.

Arrancaram-me da janela pra não ver mais nada. Só sei que teve confusão, burburinho e, pelas vozes, muita gente na rua. Com certeza o operário morreu.

Não me deixaram ver mais, nem saber de mais nada. E nunca mais tocaram no assunto.

Mas não conseguiram apagar da minha mente a emoção desse meu primeiro encontro com a tragédia. Até hoje tenho aquela imagem da torre tombando e o homem, pendurado, se projetando. Ainda hoje altura é algo que não me agrada. E isso aconteceu há mais de 70 anos.

Enfim, eu testemunhei a tragédia da Vespasiano com a Coriolano.


  • (*) Tito Flávio Vespasiano, comandante militar romano na invasão da Britânia na Judéia, foi proclamado Imperador romano em 69 DC.

  • Caio Márcio Coriolano, lendário general da República Romana no século V a.C., teve seu cognome dado em função da vitória ao cerco de Corioli, cidade dos Volscos. Posteriormente foi exilado de Roma, e contra ela impôs longo cerco com seus exércitos. “Coriolano” é personagem da tragédia homônima de Shakespeare e da “Abertura” Opus 62 de Beethoven.


Fotos internas na matéria: Appio Ribeiro


Imagens:. Foto da Vila Romana: disponível na Internet