São Paulo conta sua história: Bixiga

por Malu de Alencar

23.11.2019

(estande na feira de antiguidades do Bixiga)

Bairro ítalo-africano da cidade de São Paulo, desde sua formação primou pela gastronomia, pela música, pelas artes, basta verificar o número de teatros ali existente, o berço musical de Adoniran Barbosa, da escola de Samba Vai Vai e das cantinas que estão desde longa data com as portas abertas para um público fiel que passa de pai para filho.

Para falar do Bixiga, encontrei um texto muito interessante de Thaiz Bittar:

"Suas ruas são arborizadas, largas avenidas compostas de casas charmosas que parecem ter vindo de outra época. Blocos de arranha-céus que formam uma paisagem urbana cinzenta no horizonte, tornando-a distante desse bairro cheio de cor e vida que é o Bixiga.

O Bixiga é um dos bairros mais tradicionais da cidade, e provavelmente o mais italiano também. Situado na região da Bela Vista, sua forte tradição e cultura vieram de seus imigrantes, a maioria vinda da região de Calábria. Aqueles que não queriam trabalhar nos cafezais foram seduzidos pelos baixos preços das terras, o que resultou em atrair também portugueses, espanhóis e negros recém-libertos.

Os imigrantes acabaram tornando-se uma importante mão-de-obra especializada em substituição à mão-de-obra escrava. Foi então que o bairro começou a criar sua identidade, surgindo sapateiros, quitandeiras, padeiros, artesãos e alfaiates e por consequência, o aparecimento de pequenas indústrias.

Antes mesmo do bairro do Bixiga nascer, é importante explicar um pouco sobre o desenvolvimento da cidade e como o sistema hidrográfico é um fator essencial à expansão da Vila de São Paulo.

Os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros tiveram uma função histórica: foram usufruídos como vias de comunicação e as estradas aparecendo como canais de acesso. A vila teve sua formação no alto da colina, com a várzea do rio Tamanduateí de um lado e o Vale do Anhangabaú de outro. Os riachos Anhangabaú e Pacaembu e seus afluentes com a modernização foram canalizados sobre ruas e avenidas, facilitando a comunicação entre as mercadorias que vinham do interior e do litoral.

No final do século XVI, a cidade era constituída de um aglomerado de cem casas no topo da colina, o núcleo urbano localizava-se na região central, reproduzido pelo triângulo de três ruas: 15 de novembro, São Bento e Direita. O crescimento da economia brasileira aconteceu em meados do século XIX, com a criação de ferrovias a capital impulsionou-se, formando novos bairros através do loteamento de chácaras e novos arruamentos.

Cidade em transformação

A partir de 1870, São Paulo sofreu uma enorme transformação impulsionada pelas fábricas que surgiam, a construção de prédios, bondes de tração animal e a população só aumentava. E a partir desse momento, a Paulicéia passou a ser considerada a metrópole do café, o mais populoso centro do planalto brasileiro.

O Bixiga participou de seu processo de aculturação, pois a cidade para atrair imigrantes, fundou a Sociedade Promotora de Imigração e uma hospedaria de imigração com capacidade para quatro mil pessoas. Os italianos aproveitaram a oportunidade já que a Itália vivia superpovoamento e uma grave crise na agricultura, e no início do século XX, chegaram a constituir mais de 50% da população paulista.

Os costumes da Península foram mantidos pela população, desde sua culinária às suas músicas, comemorações e até mesmo a forma de se comunicar uns com os outros. Certas palavras e expressões muito usadas atualmente originaram-se do italiano, como por exemplo, o até-logo que foi substituído pelo “ciao”, e hoje escreve-se tchau. Sua arquitetura também foi incorporada, assim como o hábito de jogar cartas e dominó, mas foi através da cozinha que o italiano se socializou e começou a de fato se sentir em casa. E em pouco tempo, cantinas, pizzarias, padarias apareceram no cenário.


Cantinas

(Cantina Montechiaro)
(Cantina Roperto)
(Cantina Speranza)
(Cantina Villa Tavola)
(Padaria São Domingos)
(Cantina C...Que Sabe)
(Cantina Capuano, encerrou suas portas depois de 111 anos, em abril de 2018)

As cantinas eram ponto de encontro dos moradores, localizadas na parte baixa do bairro, próximas a Rua 13 de maio. A primeira foi aberta em 1907, Capuano é o restaurante mais antigo (foi fechado em abril de 2018) de São Paulo, posteriormente em 1931 a cantina C...que sabe! e cada uma com a sua especialidade, como por exemplo a Vila Távola que fica aberta 24horas por dia e as tradicionais Montechiaro, Speranza e Roperto. Destaca-se também a padaria São Domingos, uma das casas mais tradicionais, no bairro desde em 1913.

A parte mais baixa era povoada por imigrantes italianos mais pobres, que viviam em cortiços. A monocultura cafeeira terminou devido à crise econômica de 1929,provocando um aumento da população e dos bairros operários da cidade, assim como os números de habitações coletivas. Os cortiços nada mais são que casas sublocadas, e em algumas delas chegaram a morar oito famílias de uma vez para dividir o aluguel. A especulação imobiliária fez com que muitos casarões fossem destruídos para a construção de pequenos prédios, mudando consideravelmente o bairro, evidenciando um empobrecimento efetivo e uma deterioração urbana.

Os negros se acomodaram próximos às margens do Riacho Saracura, alegrando o Bixiga com muito samba e bom humor. E foi nesse bairro ítalo-africano, de muita vitalidade, que surgiu a escola de samba Vai-Vai, quatorze vezes campeão, oficializada no ano de 1930.

O primeiro registro de ocupação do território surgiu em 1559, como Sítio do Capão, pertencente ao português Antônio Pinto, posteriormente passou a chamar-se Chácara das Jabuticabeiras, por causa da grande quantidade de árvores dessa fruta. E em 1820 um homem conhecido como Antônio Bixiga, nome popular devido suas cicatrizes de varíola, comprou as terras. Há várias versões para a origem do nome do bairro, mas essa, até hoje, é a mais conhecida. E tratando-se de uma área territorial, é comum que ela se torne conhecida pelo nome do seu proprietário.

A fundação do bairro

Depois de mais de trezentos anos, no dia 1º de outubro de 1878, foi registrado o Dia da Fundação do Bairro do Bixiga, segundo consta no Calendário Oficial de eventos de São Paulo, da Câmara Municipal. O bairro é demarcado entre as ruas Major Diogo, Nove de julho, Rua Silva e Brigadeiro Luís Antônio, mas assim como o nome, suas limitações ainda geram polêmica.

A escritora Célia Toledo Lucena, em seu livro “Bairro do Bixiga: A sobrevivência cultural” destaca a importância no resgate da memória e que é “impossível pensar no Bixiga sem mensurar a relevância de continuidade de tempo e preservação de nosso patrimônio.” Porque segundo ela, o brasileiro sofre de uma ausência histórica devido à dominação política e econômica do país, intensificada pela falta de incentivos e inadequação de verbas. O que posteriormente, resultou no maior centro cultural e de resistência política do país, talvez por isso o bairro seja o palco de grandes atores, onde se encontra até hoje o maior número de teatros da cidade, formando a paisagem cênica mais significativa da cultura nacional.

A depressão instalada na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, provocou o exílio voluntário de inúmeros intelectuais e artistas fazendo com o que houvesse esse estimulo cultural exacerbado na região.

De braços dados com a cultura

Teatro Brasileiro de Comédia

O primeiro teatro a surgir foi o Teatro Brasileiro de Comédia (TBc), fundado em 1948,na Rua Major Diogo, pelo industrial italiano Franco Zampari. Depois dele, em 1953 o Teatro Arena surgiu como alternativa à cena teatral da época, a intenção era apresentar produções de baixo custo, e além de buscar a dramaturgia nacional passou a incentivar a nacionalização das peças clássicas. Em 1956, veio o teatro Sérgio Cardoso, antigo Bela Vista, administrado pela Associação Paulista dos Amigos da Arte. Dois anos depois apareceu o Teatro Oficina, território tombado pelo conselho de Defesa do Patrimônio histórico, artístico, arqueológico e turístico, e em 1963, o Teatro Ruth Escobar, um dos mais famosos centros culturais da cidade e ponto de encontro de todos os guetos e suas diversas classes sociais.

Os artistas na época estavam engajados com o problema da reforma agrária, na luta por greves e em busca de seus direitos, e as peças refletiam esses anseios. Foi então que em 1968, com a Ditadura Militar, muitos teatros foram destruídos, peças paralisadas, atores reprimidos e massacrados.

Adoniran Barbosa

E é nesse cenário que floresce o compositor de uma das músicas mais conhecidas do repertório brasileiro, Trem das Onze é fruto do sucesso do Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato. Nasceu no dia 6 de agosto de 1910 em Valinhos, São Paulo, mas foi no Bixiga que se desenvolveu como profissional e ganhou fama. Filho de imigrantes italianos, Adoniran é considerado o pai do samba paulista. As letras tem uma linguagem popular paulistana, cheio de dialetos e ironias que mistura a língua brasileira com a de seus pais, e seu sotaque ganhou a simpatia dos moradores, além do seu nome em uma rua do bairro.

Museu da memória do Bixiga

Adoniran faleceu em 1982 devido a um enfisema pulmonar, mas seus pertences são um dos 1,5 mil itens de propriedade do Museu da Memória do Bixiga, atualmente fechado e sem previsão de abrir suas portas devido à falta de patrocínio. Inaugurado no ano de 1981 e localizado na Rua dos Ingleses (parte alta), nasceu na casa do Armando Puglisi, considerado o maior “guardião do bairro”. Armandinho como ficou conhecido, tem uma frase que diz “O Bixiga é um estado de espírito”, e foi por esse amor ao bairro que também criou o extinto “Jornal do Bixiga”, foi diretor e presidente da Vai-Vai e idealizador do famoso bolo de aniversário de São Paulo, a fim de comemorar a data com um bolo gigante, de um metro correspondente a cada ano que completava. A ideia surgiu em 1985 e continua até hoje, na Rua 13 de maio, mesmo depois de sua morte em 1994.

O Museu emergiu porque ele recolhia objetos das casas quando algum morador falecia, atualmente, os itens são utilizados pelos produtores de televisão em novelas de época, e as mais de 8mil fotografias têm como finalidade de reconstituir a história do bairro. Tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrocínio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Compresp), antes de virar um Museu o lugar ficou abandonado por mais de 30 anos. Os atuais proprietários têm como objetivo restaurar o imóvel, digitalizar o acervo e promover cursos, porém estão em busca de recursos financeiros.

Além do Museu, casarões e construções históricas deram origem a pontos turísticos do bairro, como a escadaria do Bixiga, palco de peças e filmes publicitários, que dá acesso ao Museu do Óculos, a casa da Dona Yayá, que foi uma das primeiras chácaras e atualmente sede do Centro de Preservação Cultural da USP, os Arcos da Rua Jandaia, constituído no século XIX e descoberto apenas na década de 80 por acaso quando algumas construções foram demolidas, o “Caminito Brasileiro”, conjunto de casas e estabelecimentos comerciais que tiveram suas fachadas restauradas em 2009 ganhando cores vibrantes e alegres (o nome faz referência ao famoso ponto turístico de Buenos Aires) e a Feira de Antiguidades, localizada na praça desde 1982 com cerca de 300 barracas com diversos tipos de roupas, livros, joias, obras de arte, imóveis e LPS.

Memórias

Vila Itororó

Destaca-se também a Vila Itororó, símbolo do Bixiga imigrante, construída pelo tecelão português Francisco de Castro em 1922, com 4,5m quadrados, foi à primeira vila de São Paulo, com 37 casas e conhecido como Casa Surrealista. Aproveitando a nascente do Riacho do Vale do Itororó, foi também a primeira residência particular da cidade a ter uma piscina. Foi leiloada para cobrir dívidas e acabou arrematada pela Santa Casa de Indaiatuba, que depois alugou para outras pessoas. Apesar de tombado pelo Conselho Municipal, está muito deteriorado.

Festa de N. Sra. Achiropita

O bairro é caracterizado por profissionais artesanais, alguns já extintos, mas outros como o amolador de facas é mantido até os tempos atuais. E apesar dessa crescente deterioração o Bixiga ainda tem em seu caráter humano uma magia que só vivenciando para entender. Sua cultura ainda muito bem mantida, assim como seus rituais e festas, e a mais conhecida é a Festa da Achiropita.

Comemorada desde 1926, a Festa da Achiropita acontece em todos os fins de semana do mês de agosto, em homenagem a padroeira do bairro. A renda da festa é revertida para obras sociais da paróquia Nossa Senhora Achiropita, que recebe também a procissão em louvor à padroeira. Estima-se que em média duzentas mil pessoas aproveitam a festa em cada final de semana, mais de 900 funcionários trabalhavam no evento, dez mil litros de vinho e onze toneladas de macarrão são consumidos por noite.

Célia explica em seu livro que “as culturas do bairro são mantidas, mas como uma energia renovadora, condizente à continuidade histórica, sem cair naquela preservação estática.” Isso quer dizer que apesar da tradicionalidade das festas, a maneira que esses festejos se dimensionam tem um teor de resistência às reações impostas pelo modernismo. E apesar do Bixiga ser um universo complexo com graves problemas urbanos, sua diversidade étnica e cultural é a herança de uma civilização tradicional e consistente, que luta por essa cidade carente de memória.

Até hoje é possível ver as crianças brincando nas ruas, nas sacadas a prosa entre os amigos, sua poesia em pequenas vilas que conservam seu espírito cheio de tradições e memórias. Um bairro histórico, de inúmeras histórias em cada cômodo dos casarões que abriga inúmeras famílias, personagens e um palco de alegria, cheiro de comida gostosa e de um cenário antigo e popular. Sua arquitetura é humilde e delicada, cheia de autenticidade, gestos e uma fala cantada que dá vontade de dançar em suas festas e rezar por suas santas.

A comunidade fez sua história, mas ela precisa ser democraticamente viabilizada, oferecendo disponibilidade de recursos proporcionando uma integridade executável. O Bixiga foi percursor da tarefa de recuperação do verdadeiro retrato da capital paulista. E um povo que não valoriza o seu passado, não tem nem presente e nem futuro"

Dicas Culturais e Gastronômicas do Bixiga

Teatro Sergio CardosoRua Rui Barbosa, 153Tel (11) 3288.0136
Teatro Ruth EscobarRua dos Ingleses, 209Tel (11) 3289.2358
Teatro Maria Della CostaRua Paim, 72 Tel (11) 3256.9115
Teatro OficinaRua Jaceguai, 520Tel (11) 3106.2818
Café Piu PiuRua 13 de Maio, 134 Tel (11) 3258.8066
C... que Sabe RestauranteRua Rui Barbosa, 192Tel (11) 3289.2574
Museu dos ÓculosRua dos Ingleses, 108Tel (11) 3149.4000
Vila ItororóRua Pedroso, 238
Escadaria do BixigaRua 13 de Maio, 772Tel (11) 3887.0346
Casa Dona YayaRua Major Diogo, 353 Tel (11) 3106.3562
Arcos da Rua JandaiaRua Jandaia
Pesquisa de imagens:Eduardo Mendes
Fontes textuais: Thays Bittar (texto): paulistana, é fotógrafa. Escreveu este texto em 2013, quando era estudante de jornalismo na Universidade Metodista de São PauloSP BairrosVeja São PauloSão Paulo Antiga
Fontes de imagem:WikipediaImagens sem direitos autoriais encontradas na Internet