Vientos de água

por Vera Bifulco e Heitor Reali(*)

29.06.2020

Escrever é uma forma solene de falar e a escrita é a maior intimidade que o autor pode ter com seu leitor.

Ao ver um filme entramos em contato com nossos julgamentos morais, há um despertar em nós de uma memória oculta pelo tempo.

Nenhuma história é inocente, nenhuma lembrança vã, contar é pôr-se em perigo.

Juan José Campanella, diretor de Vientos de água, tem um currículo invejável onde se destaca o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2010 com “O Segredo de seus Olhos”.

Nessa série de 13 episódios, Campanella narra as vidas de pai e filho em meio aos conflitos político-econômicos na Espanha e Argentina.

O mineiro espanhol José Olaya é obrigado a se apoderar de um sonho que não é seu, mas as circunstâncias o obrigam a fazer cumprir a última vontade de seu irmão Andrés e parte então para uma aventura que o levará da Espanha à Argentina, onde uma nova vida irá moldar o caráter ingênuo, porém destemido, deste anarquista.

É uma minissérie de destinos. Pai e filho emigram em épocas diferentes. O primeiro da Espanha para a Argentina onde a trama se desloca de 1934-61, o outro da Argentina para a Espanha, de 2001-04.

Campanella se utiliza de atores que na vida real são pai e filho, Ernesto Alterio, como o jovem Andrés e Héctor Alterio como o velho Andrés. Desta forma, recria com veracidade o envelhecer do personagem principal Andrés Olaya.

E por que essa história é tão rica e por que ela é capaz de desvelar em cada um sentimentos adormecidos, emoções recônditas?

Somos um país que abriga uma miscigenação de raças, os imigrantes ajudaram a construir o Brasil, cada um de nós carrega em sua história pessoal outra história, a de sua origem, o que lhe foi passado de pai para filho, o DNA que faz aflorar em tantos momentos não mais você, mas a soma de todos os que o precederam.

Somos a construção de nossos pais, avós, bisavôs.

A primeira firmeza de espírito que se faz notar no decorrer de toda a trama em praticamente todos os seus personagens é a coragem, aquela capacidade de agir apesar do medo. Lembremos que os corajosos não são despidos de medo, mas possuem a ação apesar dele. Coragem de tantos imigrantes que se despojavam de quase tudo e se aventuravam num sobreviver incerto, mas com a esperança de uma terra nova com novas oportunidades, que lhes devolvessem a dignidade da vida e do viver, o valor do trabalho e o reconhecimento de seus talentos.

Cada um levava em sua bagagem não mais que suas riquezas interiores, suas aptidões inatas ou a voracidade de aprender novos conhecimentos, cada um carregava consigo sua história e um porquê de estar ali.

Se a história converge o tempo todo para dois homens, são as mulheres que navegam numa sociedade machista, que vão dar o tom da série. Todas, sem exceção, com sua exuberância, vivacidade, fortaleza, beleza e audácia sustentam os papéis masculinos.

Se uma palavra pode definir o comportamento de todos no crescer da história, esta palavra é a resiliência, um conceito que veio emergir e ganhar força após a Segunda Guerra Mundial. Segundo Boris Cyrulnik, seria um nascer de novo. “Não importa o quão sério foi o sofrimento, a psique, será tão flexível que com ingredientes certos de contato humano, empatia e otimismo poderão trazer à tona os comportamentos resilientes”.

Enfim, uma série que contempla cenas de momentos graves e felizes, pesados e graciosos, líricos e trágicos, frágeis e compactos, rigorosos e soltos.

Uma série para jamais ser esquecida. Difícil numa só resenha descrever todas as emoções que acometem cada episódio. Cada espectador se identificará com sua história pessoal, essa é a função e o poder da arte.

No final de “Vientos de água” a palavra FIM não aparece, pois perde seu valor semântico, para significar RECOMEÇO.

Emocione-se do riso às lágrimas e se permita embarcar nessa travessia de ventos de água.

Um alerta! Atenção, não pule as aberturas de cada capítulo, nelas estão inseridos flashbacks que complementam a história.

Para os curiosos do porquê do título, “Vientos de água” – o mais próximo para essa expressão vem da argentina Marcela Cuesta: ventos de água são os ventos que inundavam os conveses dos navios, nos quais a maioria dos imigrantes se instalava para atravessar o Atlântico.

Assista o trailer:

Ficha técnica:

Diretor: Juan José Campanella

Número de temporadas: 1

Número de episódios: 13

Atores principais: Ernesto Alterio (Andrés Olaya)

Eduardo Blanco (Ernesto Olaya)

Héctor Alterio (Andrés Olaya)

Argentina 2006

Música: do magistral Emilio Kauderer

Direção fotográfica: do aclamado Felix Monti (Oscar de melhor filme estrangeiro de 1986 com “La História Oficial”)



(*) Heitor Reali - articulista convidado
Revisão: Maitê Ribeiro
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