Sem dúvidas, um dos papéis mais difíceis de um crítico/resenhista é deixar de lado as emoções e perspectivas pessoais ou, ao menos, minimizá-las, para que, assim, suas análises possam ser mais técnicas ou imparciais. Todavia, tal tarefa, além de extremamente utópica, acaba tornando o debate um tanto quanto robótico e maçante: afinal, cinema é emoção e conversar sobre o cinema também o é.
Falar sobre “Não Amarás”, o representante da Polônia na edição de 1989 do Oscar, de forma apática é um grande erro, quase um pecado. Mesmo envolto de numerosas polêmicas, uma coisa é certa: o filme desperta emoções, o que não deve ser interpretado como algo intrinsecamente positivo, pelo contrário. Tem-se, aqui, um trabalho dirigido por Krzysztof Kieślowski que adapta parte da minissérie polonesa “Decálogo” para o cinema, obra que trazia releituras episódicas dos Dez Mandamentos.
Acompanhamos a perspectiva de Tomek (Olaf Lubaszenko), um jovem de 19 anos que trabalha para o serviço postal regional, um bairro periférico de uma Polônia fria e historicamente machucada. Utilizando-se de uma luneta furtada, Tomek observa, de forma totalmente obcecada e doentia, a rotina de uma de suas vizinhas, a artista Magda (Grazyna Szapolowska). Como se não bastasse toda a fixação nutrida, o jovem passa a persegui-la, buscando uma maneira de se aproximar, o que desencadeia o plot principal: o encontro dos dois.
Esteticamente, a obra segue um padrão recorrente do cinema polonês, galgado no uso de cores frias para evidenciar a repressão de sentimentos e conflitos internos dos personagens, o que também é reforçado pelos trabalhos de edição e montagem, grandes destaques do filme.
Tomek é a personificação de uma paixão desenfreada, retratando claramente um distúrbio/transtorno mental, sendo tal ideia reforçada ao longo da trama com passagens desconfortáveis e até anticlimáticas. “Por que as pessoas choram?”, pergunta o protagonista.
Obviamente, seria impossível definir corretamente qual seria o diagnóstico de Tomek. Contudo, creio que as características demonstradas se aproximem a um caso de Transtorno de Personalidade Antissocial, comumente conhecido como “psicopatia”. Nesse passo, várias de suas ações poderiam fazer mais sentido, mesmo que ainda não justificáveis. Seria irresponsável, como estudioso do tema, categorizá-lo firmemente como psicopata, mesmo diante da apatia frente à da dor e de suas “perversidades”.
“Não Amarás” erra em vários aspectos e nem mesmo as boas atuações (na proposta) apagam a mácula que o filme deixa. Ao romantizar a perseguição e a obsessão, Krzysztof Kieślowski ultrapassa qualquer limiar da razoabilidade. Pode-se argumentar, por outro lado, que a intenção seria justamente mostrar a realidade nua, os efeitos de uma paixão vivida de forma extremamente descomedida, mas nada pode embasar algumas das decisões tomadas. Causa demasiada estranheza e repulsa pensar que a obra foi amplamente aceita por muitos, vista até como símbolo do “cinema cult”. Em rápidas pesquisas na internet, comentários de pessoas que se identificam com Tomek ou que consideram “Não Amarás” um filme sobre um amor “puro e verdadeiro” são numerosos, o que é bem preocupante.
É inegável, porém, que parte dos problemas foi simplesmente importada do material fonte, demonstrando que as escolhas tomadas por Kieślowski são ratificações dos defeitos do próprio “Decálogo”.
Junto a tudo isso, os personagens são pouco relacionáveis e os diálogos pobres, o que contrapõe a interessante atmosfera de tensão, contrastada pela movimentação da câmera (ótimos empregos de câmera panorâmica e zoom in/zoom out) e o uso repetitivo da trilha sonora. O erotismo, elemento essencial da obra, é sempre subjacente, o que reforça inclusive as características e personalidade de Tomek, que, mesmo dizendo amar Magda, não sabe o que realmente quer com ela. É justamente o ardor pelo desejar, não pelo efetivamente desejado.
Particularmente, eu até concordo com a afirmativa de que o “Não Amarás” é poético e cheio de sensibilidade, só não acredito que isso transforme o filme em uma obra-prima. Nem toda poesia é necessariamente boa, certo?
O filme está disponivel no Telecine
Nota: 4/10
Assista o trailer:
Ficha técnica:
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof Piesiewicz
Elenco: Grazyna Szapolowska, Olaf Lubaszenko, Stefania Iwinska
Gênero: Drama, Romance
Duração: 87 minutos
País de Origem: Polônia
Revisão ortográfica: Anne Preste
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