O cinema italiano é conhecido por trabalhar temáticas polêmicas de formas sensível e intimista, e são justamente tais aspectos que a edição online da “Festa do Cinema Italiano” homenageou neste ano. Trazendo um destaque especial para a filmografia de Alice Rohrwacher, o festival aconteceu entre os dias 17 e 27 de junho. Nesse sentido, decidi tecer um breve comentário acerca da obra de estreia da diretora.
Um filme sobre amadurecimento e rebeldia, “Corpo Celeste” apresenta ao público o cotidiano da caótica Marta (Yle Vianello), uma garota de 13 anos que retorna ao Sul da Itália depois de uma década morando na Suíça. Mais do que isso, acompanhamos concomitantemente seu ingresso na catequese e sua transição para a adolescência, dualidade que deixa a personagem em conflito constante. Junto aos duros dogmas do catolicismo e a preparação para crisma, Marta precisa conviver com a pressão familiar e todas as hipocrisias da sociedade moderna.
Com um quê documental, a obra não se apressa ao estabelecer sua atmosfera e apresentar os personagens, dando um caráter de realismo muito grande à trama. Tudo parece muito crível: a comunidade, as incoerências, as motivações, o coro desafinado... Contudo, exatamente por ser intimista e um tanto quanto “devagar”, o filme pode acabar se tornando frustrante para quem espera uma grande reviravolta à la David Fincher (o que não é absurdo, visto que existe uma tensão sempre implícita). Reforçando a intenção da produção, o elenco é operante e consegue elevar ainda mais a aparente veracidade dos eventos, o que não seria possível sem as ótimas atuações de Yle Vianello (Marta), Pasqualina Scuncia (Santa) e Salvatore Cantalupo (Don Mario).
Mesmo que seja uma crítica direta à Igreja Católica, o longa alimenta debates importantes sobre a própria religiosidade e os perigos de uma vida sem questionamentos, quase como uma ode à irreverência. Outro aspecto que contribui para tal entendimento é a simbologia presente na obra, seja através do uso de vendas ou da cruz caindo na água, existem significados subjacentes em diversos momentos.
As locações escolhidas são realmente formidáveis e revelam a polaridade de uma Itália naturalmente bela, mas assolada pela desigualdade social, contraste evidenciado pela cinematografia, que abusa da câmera subjetiva para simular a curiosidade de Marta. A edição, diferentemente, traz transições e cortes abruptos, quase como acontece quando saímos, após horas, de um quarto escuro em direção à claridade.
Infelizmente, a mixagem de som não equilibra os ruídos captados e os diálogos, gerando uma poluição sonora que incomoda bastante. Proposital ou resultado de falta de técnica/equipamento, a discrepância de sons tira a atenção, mas não o suficiente para tornar o filme “inassistível”.
No fim, percebemos que, às vezes, temos que sujar nossas melhores roupas para podermos encontrar a felicidade. Ainda, fica claro que acreditar em algo não significa seguir dogmas cegamente e, talvez uma das principais mensagens, que uma das bases da fé é justamente o questionamento. Mesmo rodeada de religiosos e ter muitas dúvidas, Marta foi a personagem que mais se aproximou do que pode ser chamado de “divino”.
Talvez não seja inovador, mas “Corpo Celeste” honra o Cinema Italiano com sensibilidade, lembrando que “os verdadeiros milagres estão nas pequenas coisas” e que até Jesus Cristo teve seus momentos de dúvida.
O filme, até a publicação desta matéria, estava disponível no Filmin.
Nota: 8/10
Assista o trailer:
Ficha técnica:
Direção: Alice Rohrwacher
Roteiro: Alice Rohrwacher
Elenco: Yle Vianello, Salvatore Cantalupo, Pasqualina Scuncia
Gênero: Drama
Duração: 100 minutos
País de Origem: Itália
Revisão ortográfica: Anne Preste
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