Incerteza. Mais do que em qualquer outro período histórico, este termo define o futuro da sociedade quando o tema é Privacidade x Tecnologia. Quais os limites entre a privacidade, as liberdades individuais e a tecnologia e como as soluções tecnológicas atuais podem romper discretamente essa fronteira, sem o consentimento voluntário dos usuários?
A ideia de manter o mundo conectado por meio da tecnologia possibilitou o reencontro de pessoas afastadas há gerações; ajudou pessoas a conseguirem doações de órgãos; permitiu o encontro de famílias separadas por fronteiras geográficas; viabilizou a venda de bens, produtos e serviços de forma quase instantânea; e pareceu tão empolgante para a maioria de nós, que parece que ninguém se lembrou de ler e (voluntariamente) aceitar os termos e as condições de uso.
Ao pensarmos em internet, automaticamente lembramos dos apps Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter e YouTube. De que forma estas e outras soluções tecnológicas têm contribuído para a reorganização das relações sociais, ameaçando a estrutura e a malha social, constituída por valores indispensáveis como as liberdades individuais, o Estado Democrático de Direito e a segurança jurídica?
Não se trata apenas de polarização social, causada e profundamente fomentada pela tecnologia, mas também de uma séria e irreversível reestruturação sociológica, na qual o lucro implacável das organizações leva à ideia de produtividade e eficiência, independentemente dos sacrifícios dos direitos individuais, do meio ambiente e do futuro das novas gerações.
O que geralmente não percebemos é como atualmente as pessoas e os seus dados pessoais tornaram-se muito mais lucrativos para as empresas, na medida em que mantêm os seus usuários presos nas telas de seus smartphones ou notebooks. A atenção do usuário é a chave do sucesso no negócio da tecnologia.
Cabe ponderar que não se trata de uma coincidência etimológica que o termo ‘usuário’ aplique-se apenas aos usuários de drogas e aos usuários de internet.
Quanto do tempo da sua vida você está disposto a oferecer às suas redes sociais, para que as empresas possam te vender bens, produtos e serviços sob medida, de coisas pensadas para você, de acordo com as suas preferências e o seu estilo de vida, obtidas a partir de cálculos de bots e de algoritmos de TI?
Não estamos falando de um simples e superficial tratamento de dados, é muito mais profundo e complexo do que isso, já que até mesmo o tempo de visualização de cada post, curtidas, comentários e reações é computado para construir um avatar detalhado e específico de cada usuário. A partir dessas informações, as plataformas traçam o seu perfil psicológico completo, preveem as suas ações, direcionam as suas predileções e calculam as suas atividades e reações em um determinado sentido.
Sim, invariavelmente o algoritmo usa o seu psicológico contra você mesmo.
Note-se que também não se trata apenas de uma publicidade agressiva dirigida, mas de um estereótipo completo de quem você é, em sentido amplo e literal, suas preferências artísticas, seu gosto musical e literário, sua formação educacional, suas experiências de trabalho, sua inclinação política, sua convicção religiosa, sua orientação sexual, seu histórico de saúde, seus relacionamentos, seus familiares, enfim, todas as circunstâncias que te formam e te individualizam enquanto uma pessoa detentora de direitos e obrigações.
Se levarmos em conta que a capacidade de processamento e consequente tratamento de dados aumentou em um trilhão de vezes, dos anos 1960 até os dias atuais, e, ainda, considerarmos que nenhum outro segmento teve uma ascensão tão vertiginosa, teremos uma singela noção do inacreditável poder da Indústria da Tecnologia. Todas essas circunstâncias tornaram as empresas de informáticas as mais ricas e poderosas de todos os tempos.
‘Avassaladora’ seria a expressão correta para definir a velocidade de propagação de uma fake news, que alcança o público seis vezes mais rápido que uma notícia verdadeira.
Ocorre que os efeitos colaterais sociais, provenientes do uso indiscriminado e irresponsável da tecnologia são devastadores e irreversíveis, como a polarização político-social, a intolerância, o preconceito, os crimes de ódio, as violações étnicas, o genocídio, a xenofobia(**), a xenelasia(***), as fake news, dentre tantos outros, capazes de esgarçar e destruir completamente o tecido social e a organização do Estado, na forma como os conhecemos atualmente.
De fato, se as convicções de um lado são tão veementes e o lado do outro é sempre aquele que está errado, o diálogo é dispensável, originando, assim, uma radical polarização social e a intolerância para com a ideia e a pessoa do próximo. Nasce assim o rompimento da estrutura social previamente estabelecida e da organização política do Estado e caminhamos para uma inevitável e irreversível distopia social.
Usamos o termo irreversível porque é evidente que as tecnologias atuais não regredirão, ao contrário, os algoritmos estarão cada vez mais assertivos e aperfeiçoados às necessidades humanas, através da IA e do ‘Machine Learning’ e te darão a sensação de que o mundo todo está ao seu lado, em suas convicções e sentimentos, durante toda a sua rolagem no Facebook, por exemplo.
Um fato relevante é voltado ao número de adolescentes, nascidos entre meados dos anos 1990 e subsequentes e que tiveram acesso às mídias sociais antes mesmo do ensino médio. Temos nesta uma geração marcada pelo aumento de casos de depressão, automutilação, o medo de assumir riscos e, sobretudo, o medo da rejeição. Aliás, nunca se notou uma diminuição tão significativa na emissão do número de carteiras de motoristas em um determinado período histórico como nessa geração.
A simples curtida do Facebook ou Instagram, inicialmente idealizados para espalhar coisas positivas no mundo, atualmente pode ser entendida como uma espécie de termômetro utilizado pelos jovens e que, assim como os comentários de outras pessoas, pode causar ansiedade, depressão, sensação de medo e rejeição.
Um dos pontos mais preocupantes de todo esse contexto é o momento em que a polarização torna-se tão extrema que salta das telas digitais e alcança o mundo físico, gerando intolerância, discórdia, massacres, terrorismo e incontáveis agressões na vida real.
Episódios chocantes de genocídios, como o de Myanmar, devem ser pensados sob o prisma sociopolítico e da proteção das liberdades individuais, para entendermos e evitarmos novas fatalidades como esta no futuro.
Portanto, o período em que vivemos hoje é um momento de incertezas sociais, fundado na ameaça de uma grave e profunda segregação social e na quebra do convívio pacífico entre os seres humanos, decorrente da intolerância à opinião divergente e de vários elementos tecnológicos como as fake news, polarização social, política e econômica, preconceito e violência.
Em nossa singela opinião, a tecnologia deve aproveitar este momento histórico para desconstruir o caos social e amealhar novamente o tecido social, rompendo as barreiras geográficas e culturais, a partir da integração e do altruísmo entre os seres humanos, caso contrário, a humanidade caminhará para uma inevitável e sombria distopia social.
Assista os trailers dos documentários 'O Dilema das Redes' e 'Privacidade Hackeada' abaixo:
Dilema Social
Privacidade Hackeada
(*)Marcelo Dias é Membro efetivo da Comissão Especial de Compliance da OAB/SP e articulista convidado do Cidadão e Repórter.
(**)xenofobia: Xenofobia é o medo, aversão ou a profunda antipatia em relação aos estrangeiros, a desconfiança em relação a pessoas que vêm de fora do seu país com uma cultura, hábito, raça ou religião diferente. Wikipédia
(***)xenelasia: Proibição à entrada e residência de estrangeiros em cidades da Grécia antiga. Michaelis