Os primeiros sons que ouvimos, por volta do quarto mês de gestação, são aqueles provenientes de nossas mães. São os batimentos cardíacos, o ritmo de sua respiração e uma espécie de música, impregnada na sua voz que soa melodiosa.
Num mundo onde o visual predomina, em detrimento do acústico, a música, por ser uma arte invisível, intangível, tende a ser negligenciada, fazendo-nos esquecer que é ela que fala mais diretamente aos nossos corações e mentes.
A música não é como a pintura, ela vem de dentro e não de fora.
Hoje, o que antes eram suposições de lunáticos e charlatões, comprova-se, através de ressonâncias magnéticas funcionais, que a música fortalece a conexão entre as áreas do cérebro que processam uma recompensa positiva, com sensações de prazer, acalmando as pessoas e colaborando para que se tenha uma atenção focada, entre outros inúmeros benefícios.
A terapia musical e o desenvolvimento dos conhecimentos relativos à neuroplasticidade cerebral já são hoje uma realidade comprovada, mas nem sempre foi assim.
Um dos pioneiros a ligar a música à capacidade cerebral, tornando-se um eficaz tratamento em diversas anomalias corporais, foi o otorrinolaringologista francês Alfred Tomatis (1920/2001).
Tomatis foi um dos primeiros a apontar os riscos de ruídos excessivos para a saúde. Em suas pesquisas observou que a surdez, quando provocada, tinha ampla relação com o corpo, levando a problemas psicológicos e motores.
Posteriormente, ao atender cantores de ópera — colegas de seu pai, que também era cantor — que o procuravam para melhor controlar sua voz, Tomatis faria uma importante descoberta, hoje conhecida como a sua primeira lei.
O médico investiu contra o senso comum de que a laringe seria o órgão fundamental do canto. Para ele, “a voz só pode conter as frequências que o ouvido é capaz de ouvir”, resumindo numa de suas frases que provocava risos e chacotas: “Cantamos com os ouvidos”.
Dando sequência a seus estudos, o médico inventou um instrumento, que chamou de Ouvido Eletrônico, que consistia num microfone com amplificadores e filtros que bloqueavam ou ampliavam determinadas frequências, escutadas através de um fone de ouvido.
Alfred Tomatis em seu laboratório
Esta, que é a segunda lei de Tomatis, diz que: “Se dermos ao ouvido comprometido a possibilidade de ouvir corretamente as frequências perdidas ou comprometidas, elas serão imediata e inconscientemente restabelecidas na emissão vocal”; em outras palavras, a escuta “consertada” pode curar a voz.
A descoberta seguinte, a terceira lei de Tomatis, afirma que o treinamento do ouvido — aqui entendido como um atributo externo do córtex cerebral — pela exposição às frequências adequadas pode ter um efeito permanente na escuta e, portanto, no cérebro.
O método de Tomatis foi ganhando respeito, o que acabou por levar o médico a uma abadia beneditina situado nos Pirineus franceses, bem perto da fronteira com a Espanha.
Abadia de São Bento em Calcat (França)
Tomatis foi chamado, em 1967, como último recurso, para atender os 70 monges da Abadia D’En Calcat, que sempre estavam ativos e dispostos, mesmo dormindo apenas quatro horas por noite e, na ocasião, se mostravam apáticos e desestimulados, a maioria presos à suas celas, aparentando exaustão e outros preocupantes sintomas.
Médicos chamados anteriormente, ou diziam que o problema decorria da falta de sono e que os monges deveriam dormir e descansar mais, ou alegavam que era falta de vitaminas provocada pela alimentação vegetariana. Deveriam, portanto, comer carne.
Nenhuma dessas recomendações funcionou e, pelo contrário, piorava ainda mais a situação.
Tomatis logo compreendeu que o problema era teológico e não orgânico.
Tomou conhecimento que a Abadia tinha um novo e exigente abade que, fiel às determinações do Concílio Vaticano II de modernizar as práticas religiosas, havia suspendido a prática dos cantos gregorianos, que ocorriam diariamente das 6 horas às 8 horas da manhã, por acha-la supérflua.
Seguindo as regras de São Bento, os monges praticavam votos de silêncio e com a ausência dos cantos, deixaram de receber o estímulo da voz humana, tanto de si mesmo como de seus irmãos. Isso, dizia o Dr. Tomatis, é que estava causando a perda de energia e da vontade, alterando a postura e a disposição física.
O simples retorno da prática do canto gregoriano não ocasionou, no entanto, uma recuperação imediata. Os monges estavam por demais deprimidos, não conseguindo cantar como antes.
Tomatis começou então a usar sua técnica do Ouvido Eletrônico e paulatinamente a disposição física e a postura dos monges voltaram, permitindo que retornassem ao ritmo acentuado de trabalho a que estavam acostumados.
Segundo o médico, os monges cantavam para recarregar suas energias, sem que eles tivessem consciência do fato. O canto gregoriano e os sons mântricos, além de energizar, também acalmam o espírito.
Tomatis viria a escolher a música de Mozart, notadamente onde predomina o violino, como sua ajuda terapêutica preferida.
Quanto à Abadia, a fome que havia não era de comida nem de sono, mas sim de energia sonora.
Quis o destino que, quando de suas andanças pelos arredores da Abadia, Dr. Tomatis viesse a conhecer um jovem de 18 anos que costumava visitar de bicicleta o mosteiro, situado a 16 quilômetros de sua casa. Ali ele encontrava a paz.
Mal saberia que iria encontrar muito mais. Paul Madaule havia nascido com um terrível distúrbio de aprendizado, oportunamente diagnosticado como dislexia. Mas não tinha apenas problemas com a leitura, caminhava de forma desengonçada, tinha reduzido senso de orientação espacial e distração, além de falar em tom monótono, que mais se assemelhava a um murmúrio. Com tudo isso, era alvo de constantes zombarias dos colegas, o que o tornava extremamente inseguro.
Após um longo aprendizado, Paul passou a morar na casa de Tomatis, onde ele tinha também seu escritório.
Paul, que na infância mal conseguia comunicar-se, formou-se em psicologia na Universidade de Paris e logo estava fazendo conferências em francês e inglês e já estava bem adiantado no espanhol.
Tornou-se o principal discípulo de Alfred Tomatis, implantando Centros de Escuta em inúmeros países, prestando inestimável assistência nos casos mais desafiadores de desenvolvimento cerebral.
Paul Madaule e Alfred Tomatis
Conheça a Abadia de São Bento em Calcat com som do canto gregoriano de monges
Coro da Abadia de Notre-Dame de Tamié (Chœur de l'abbaye Notre-Dame de Tamié)
Música: Ó Pai das Luzes (Vésperas) (Ô Père des lumières (Vêpres))
O Cérebro que Cura - Norman Doidge - Editora Record