Diretivas Antecipadas de Vontade

Autonomia e decisões ao final da vida

Vera Bifulco

10.03.2021

“Não é fácil lidar com a morte, mas ela espera por todos nós. Deixar de pensar na morte não a retarda ou evita. Pensar na morte pode nos ajudar a aceitá-la e a perceber que ela é uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer outra”.

Philippe Ariès(*)

Falar de morte, de nossa finitude como seres humanos, ainda é uma conversa bem difícil de se fazer acontecer, principalmente para quem não é da área da saúde. Os profissionais da saúde lidam com a vida e como a morte faz parte da vida, eles convivem e lidam com a finitude em seu cotidiano.

A morte, assim como o processo de envelhecimento, constitui uma experiência que se procura afastar até quando o passar dos anos e as enfermidades triunfem. Pode ocorrer, no entanto, em certos momentos, que a capacidade para usufruir a vida seja rebaixada a níveis intoleráveis e que crenças e outras pulsões pedem sua extinção. Nesse instante, deve-se recorrer ao homem como ser moral e consciente, um encaminhamento menos doloroso da questão.

Mesmo num momento de pandemia como estamos vivendo, a morte mostra-se estranha, dolorosa, uma visita nada desejada, seja para nós, seja para quem amamos.

Mas ela existe independente de nossa vontade ou desejo de sua aparição.

A questão que vamos explanar nesta matéria tem um lado filosófico mas também esclarecimentos de ordem prática, facilitando ao leitor entender esse conceito que veio pós modernidade, do que fazer quando formos surpreendidos por doença incapacitante que nos tire o poder decisório em fase próxima de nosso desfecho final de vida, em palavras mais simples, o que quero que seja feito comigo quando acometido por doença incurável, progressiva, ativa, sem perspectiva de reabilitação frente a terapias existentes, e que possam prolongar minha vida sem qualidade da mesma e sem um prognóstico de reversibilidade.

É fato que vivemos uma época em que o prolongamento da vida se mostra uma realidade plausível. Septuagenários não são mais exceção, e doenças, principalmente as infecciosas, que antes tiravam a vida rapidamente, hoje são prolongadas graças ao uso de uma medicina e farmácia de ponta.

Independentemente do que o homem faça para prolongar a vida, o final é imutável, mais cedo ou mais tarde a visita da morte vem bater à porta como é da natureza de todo ser vivente.

Relevante e de crucial discussão é o que deve ser feito quando já não podemos mais decidir o que fazer quanto a nossa vida e seu prolongamento frente a doenças incapacitantes e que a medicina até o momento presente é incapaz de curar.

A tão sonhada qualidade de morte, dignidade e respeito nessa hora que antecede nossa partida deve ser pensada muito antes de sua chegada e para isso evoca-se uma prática muito em voga atualmente, fazer o Testamento Vital, deixar claro, quando ainda com consciência plena e sem doença em curso, os desejos que quero ver respeitados quando não mais estiver em condições de expressá-los e desejoso de ter uma qualidade de morte livre de sofrimentos e torturas e futilidades terapêuticas que em nada garantem a tão sonhada serenidade e paz que o momento que antecede a morte exige.

Numa única frase: “decisões de fim de vida, JAMAIS deveriam ser deixadas para o fim da vida”, e explicamos, pode não dar tempo.

Outra questão que se segue é o quanto esses desejos feitos em tempo útil podem ajudar a família e a equipe de saúde na tomada de decisões cruciais em relação às pessoas que amamos. Exemplos: colocar ou não sonda de alimentação em pacientes com demências avançadas, intubar ou não quando não vai haver reversibilidade do quadro clínico, ou seja, quando a intubação não tiver indicação, doação de órgãos, os exemplos são inúmeros.

Reflexões sobre a vida e morte encontram um espaço adequado no âmbito da filosofia, das religiões e da psicanálise, o que não isenta o direito da obrigação de conhecê-las, de modo a permitir uma convivência harmoniosa com processos que compõem a personalidade humana.

A nomeação da pessoa que o paciente tem mais confiança para prover os seus cuidados pessoais e administrativos - com o seu patrimônio pessoal - durante o tratamento de sua doença, ainda que necessite preceder uma decisão judicial em processo de interdição para o cumprimento dessa vontade, também é um assunto importante a se discriminar expressa e claramente no Testamento Vital, pois será considerado judicialmente quando da nomeação do curador judicial.

Expressar estas “diretivas antecipadas de vontade”, como também é designado o Testamento Vital, pode se dar através de escritura pública, forma mais segura de acordo com a grande parte dos juristas da área, por ser feito em cartório por escrevente dotado de fé pública. Contudo, pode também ser feito mais informalmente, através de transcrições pelo médico que acompanha o paciente, em seu prontuário. O acompanhamento contínuo com o médico de confiança do paciente onde questões de livre desejo do paciente já foram conversados desde o início do tratamento é fator facilitador para que esse processo se cumpra da maneira mais digna e respeitosa.

Numa entrevista que dei a um jornal famoso há tempos, declarei que meu testamento vital era o telefone de meu médico de confiança, uma metáfora para dizer, que confiança desde o início de um processo de tratamento de saúde tem um peso imprescindível.

Lógico que num país com as desigualdades como o nosso, essa metáfora é de difícil alcance, mas vale como alerta.

Há sem dúvida uma burocracia que permeia a feitura deste documento, mas o que mais importa para nós nessa matéria é levantar a importância do questionamento acerca desse conceito, que muitos desconhecem e que pode fazer o grande diferencial nos derradeiros momentos de nossa existência ou da vida de quem amamos.

O importante é o autor das “diretivas antecipadas de vontade” estar com seu discernimento intacto, com capacidade cognitiva para a prática dos atos civis, a validar as suas escolhas.

O conjunto de estudos que envolvem o “cuidado como princípio jurídico”, o questionamento em torno do direito à vida e à morte digna, independente de credo ou cultura, busca conhecimentos científicos e técnicos ligados a essa temática.

Diante das atuais possibilidades fáticas e jurídicas acerca de se prover melhor qualidade de vida, que tal darmos maior importância a estes assuntos em nosso cotidiano e daqueles que amamos?

(*)Philippe Ariès foi um importante historiador e medievalista francês conhecido pela monumental História da Vida Privada, coleção organizada em parceria com Georges Duby, publicada em cinco volumes, que apresenta uma análise do cotidiano ao longo da História Universal, em períodos históricos que vão desde o Império Romano até fins do século XX. Também é notória sua contribuição para o estabelecimento de um novo campo de estudos: a história das atitudes relativas à morte e ao morrer. Ele via a morte, assim como a infância, como uma construção social. Sua obra seminal neste âmbito é O Homem Diante da Morte, seu último grande trabalho, publicado no mesmo ano em que seu status como historiador fora finalmente reconhecido através de sua indicação à École des hautes études en sciences sociales (EHESS) para o cargo de directeur d'études.


Revisão ortográfica: Geyse Tavares


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