Pad Man

por Vera Bifulco

24.05.2020

“Para que milhões? Haverá um cabo de ouro na minha escova de plástico, mas preciso de plástico para escovar.” (Muruganantham, A)

Poderia um filme que conta a saga de um indiano pobre — Arunachalam Muruganantham — que ao resolver fabricar a baixo custo, absorventes femininos, ensinar-nos algo sobre a prática de uma medicina mais focada no ser humano, desafiada hoje pelo imponderável: a pandemia de Covid-19?

Quando sabemos que esse homem foi reconhecido em 2014, pela revista Time, como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo, vale a pena refletir sobre sua história.

Seria apenas uma bela história de amor, a de Lakhsimi e Gayatri, moradores de uma pequena aldeia nas profundezas da Índia, não fosse ele um homem especial, que acreditava que “o homem só pode ser chamado de homem quando protege a mulher”.

Como recém-casado observou que sua amada e todas as mulheres da família, passavam 5 dias por mês fora de casa, dormindo na varanda, e usavam para sua higiene no período menstrual velhos panos que eram lavados toda madrugada, fora do olhar de qualquer pessoa. Em 2001, período no qual se inicia essa história real, e ainda em 2014, apenas 12 a 18% das mulheres indianas usam absorventes descartáveis para menstruação. Lakhsimi não se conformou com essa situação, e começou a pôr em prática uma jornada pessoal para oferecer à jovem e envergonhada Gayatri, maior qualidade de vida, todos os dias de sua vida.

Essa jornada, e todos os seus passos, todas as perdas e ganhos do caminho, é em si a grande lição do filme.

O primeiro elemento utilizado com sabedoria por Lakhsimi é o tempo. A observação da natureza do corpo feminino, da mente feminina, dos valores e crenças das mulheres indianas, da sua comunidade, levou sim muito tempo. Passo a passo foi observando, perguntando e refletindo antes do passo seguinte. A cada passo enfrentou resistência, medo, vergonha e crescente afastamento de seus familiares, que estavam a anos-luz de qualquer conexão com suas ideias. Pediu ajuda aos médicos, obteve alguma compreensão. Mas não suficiente. Como poderia um homem se interessar por um tema tabu entre as próprias mulheres?

Mas sem deixar de sonhar com outra realidade, ele segue seus passos. Investiga, experimenta e aprimora a fabricação de baixo custo de absorventes semelhantes aos caríssimos da farmácia, que sua esposa e a maioria das mulheres não tinham como comprar. O fator TEMPO se mostra então capaz de transpor qualquer barreira e fazer acontecer o impossível. Alimentando um sonho que não traria nenhum benefício ou lucro pessoal, Lakhsimi perde tudo, a esposa, a família, o emprego, é ridicularizado por sua aldeia e por fim expulso. Um dos fatores limitantes entre ele e seu povo é a religião local, que proíbe qualquer menção à biologia da mulher. Não é possível mencionar qualquer coisa referente ao ciclo menstrual, período de vergonha e impureza.

Fora de sua aldeia, continua a perseguir o que tem certeza de que seria um bem. Segue a encontrar pessoas que o julgam um maluco, mas encontra algumas que reconhecem ali algo relevante. As relações de vínculo que se formam e se perpetuam nessa peregrinação são muito especiais. Cada um lhe ensina um pouco, e ele aprende muito com quem discorda dele, e mais ainda com quem lhe oferece apoio.

Quando encontra a pessoa que consegue dar visibilidade a sua história, já tem construída uma máquina capaz de fabricar absorventes pelo preço de 2 rúpias. E é por esse preço que decide vender cada absorvente. Forma então uma rede de vendedoras e instala em cada aldeia uma nova máquina, indo embora após ensinar as mulheres a usá-la. Forma-se uma rede de economia solidária, trazendo autonomia e empoderamento para milhares de mulheres pobres. A comunidade então é transformada.

Após receber um prêmio de inovação em seu país, a história ganha o mundo, até um inesquecível discurso na ONU, em que deixa claro que sua essência como homem é maior do que o lucro. Em sua essência mantém sua cultura, sua fé, sua persistência e seu amor por uma mulher expandido para todas as mulheres. Recebe então várias propostas de compra e produção em massa de sua invenção. Em sua genial simplicidade entende que aí não poderia mais vender seu produto por 2 rúpias.

Recusa todas as propostas que lhe fariam rico e retorna a sua aldeia, onde é recebido pela família e por todo o país como um herói, o “Pad Man” (Homem absorvente).

O olhar de Lakhsimi era aparentemente para as pequenas coisas, sem valor para sua cultura. Ao fim, sua busca por um “simples” absorvente mudou a vida de milhares de pessoas. Tornou partilhada e fez diminuir uma vergonha milenar feminina, a do próprio corpo. Ao experimentar em seu corpo masculino um absorvente, exercita ao extremo a habilidade de empatia. Podemos exercitar algo parecido no cuidado em saúde, ao tocar, manipular e propor procedimentos em outros corpos. O que penso ser bom para meu corpo, seria para outro corpo? Que distanciamento pode persistir entre profissionais e pacientes de diferentes gêneros? A cada etapa de seu invento ele ouvia as mulheres e tentava apreender profundamente o que estava bem, e o que ainda precisava melhorar.

Praticar um olhar para as pequenas grandes coisas da vida. É refletir a cada passo, individualizar cada ação, personalizar cada toque, voltar atrás se for preciso, esperar um pouco mais, voltar à ação quando houver o mínimo de certeza. Permitir que o tempo seja o mestre de tudo. Lakhsimi fez tudo isso em sua caminhada e resolveu que o melhor para cada uma das mulheres era continuar com suas próprias máquinas e redes locais, em contraponto à escala industrial.

A cultura da Índia ainda provoca grande sofrimento. Twinkle Khanna, o produtor de Pad Man conta que “em agosto de 2018, uma menina de 12 anos foi repreendida pelo professor porque manchou o uniforme e o banco. Ela não deixou a escola. Foi para casa e saltou da varanda, suicidou-se”. Como poderia então ser essa uma questão menor? Um momento tocante do filme é quando a pequena sobrinha de Lakhsimi, de 12 anos, precisa passar sua primeira noite na varanda, apesar das mulheres da família comemorarem cantando sua passagem para a fase reprodutiva. A história de Lakhsimi mostra que sim, é possível uma revolução a partir do microcosmos, do cotidiano, do aparentemente pequeno e simples. Em nossa prática em saúde, o que fazemos, como fazemos em cada atendimento individual, se reflete e expande por toda a rede de saúde.

Hoje diante de um processo avassalador e imponderável que configura a pandemia de Covid-19, em que as decisões precisam ser rápidas e podem atravessar a vida de milhares de pessoas, podemos exercitar a lição de Pad Man: partir da realidade de cada comunidade, observar em sua cultura o que favorece e o que limita um resultado teoricamente favorável do ponto de vista sanitário e epidemiológico, escutar, escutar e escutar de novo, antes de cada decisão coletiva. Analisar criteriosamente, a cada passo, a cada decisão, o que resultou positivo e o que não deveria ter sido feito.

Ganhar confiança e expressar confiança, observar o todo e o particular. E acima de tudo, o que se coloca como o maior dos dilemas para governantes, colocar a vida humana acima do lucro e da preservação do mercado e sistema financeiro.

Nesse processo, mais do que nunca, os profissionais de saúde precisam vestir seu uniforme de líder em todos os seus atos, com compaixão, firmeza, consolando e colocando em prática as melhores evidências científicas, para aquela pessoa, aquela família e aquela comunidade. Enfrentarão, como o Pad Man, discordâncias, divergências, resistências pequenas e imensas, restrições de material, carência de recursos financeiros, ameaças a sua segurança, e até hostilização como possíveis portadores do vírus fora de seu ambiente de trabalho. O que trará sustentação é a certeza de estar fazendo o certo, o melhor, o possível, como disse Lakhsimi: “Transformarei a vergonha de Gayatri em respeito, nem que precise ir ao inferno”.

A grandiosidade desse herói com absorventes no bolso reside em seu espírito comunitário, olhar o outro, ajudar seu semelhante, não somente seu próximo, mas os próximos de seu próximo. Seu discurso na ONU tocou a todos pelo conteúdo humanístico proferido com alegria, no qual compara seu invento com a grandiosidade do homem que foi a Lua. E lembra que os homens não pensam, apenas vivem sem enfrentar de verdade os problemas, que são de fato oportunidades. Conta sua história triste, de grandes perdas, que consistiu em tentar e falhar inúmeras vezes, mas devagar chegou ao seu objetivo: “enquanto houver mulheres será um bom negócio”.

Todos, mas principalmente as mulheres, se viram retratadas em sua fala.

Enfim, é a história de um homem que enxergava além da maioria, e não guardou para si o que enxergava. Ao contrário, deu voz ao seu coração e se reinventou a cada queda, a cada pedra do caminho.

Enxergar além não é fácil. É doloroso. É o que precisamos neste momento de crise humanitária: dar voz a quem consegue ver além de si mesmo.

“Ganhar dinheiro faz um homem sorrir. O bem? Faz muitas mulheres sorrirem.” Muruganantham, A.

Divido esse texto com uma grande amiga e médica, Carla Rosane Ouriques Couto.

Entendemos que as artes, em todas as épocas, são capazes de dizer em poemas, livros, narrativas, filmes, a expressão maior, o grito de toda uma humanidade e são as artes que muitas vezes nos salvam.

Assitir Pad Man pode desvelar essas e muitas outras reflexões, num momento em que o homem é levado a questionar-se e questionar o mundo em que vive e suas ações.

Para finalizar vale ressaltar que o AMOR, esse sentimento maior, foi o primeiro passo para a transformação do sonho em realidade, como mostra magistralmente essa obra cinematográfica.

Assista o trailer:

Ficha Técnica:

Nome original: Pad Man (Homem Absorvente).

Direção: Shree Narayan Singh.

2018, Índia.

Atores: Akshay Kumar e Sonam Kapoor.




Revisado por Maitê Ribeiro

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